sábado, 4 de outubro de 2008

"Sete"

As caras fecham-se para te dar a notícia. Escuta-la meio incrédulo, mas o tom de voz acaba por te convencer. Depois compras as flores e deixa-las ao lado do caixão. Olhas mais uma vez para ver se não te esqueceste de escrever o nome em letras bem grandes (as pessoas esquecidas são assim, às vezes até nem se lembram que outras ainda existem até ao dia em que sabem do funeral), comentas o tom de pele do morto e a roupa escolhida para a última viagem, desta vez na horizontal. Na horizontal, mas agora sem ressonar.

Ainda deve haver tempo para pensar um bocadinho e fazer as pazes, nem que só por uns meros segundos, com aquele que tanto invejas e não suportas, meros segundos e todos são amigos e justos e sensatos e morais.

Buraco aberto, terra para cima, não sem antes o senhor padre deixar as palavras mágicas no ar. Duas lágrimas no chão, óculos escuros nos olhos e se esperares pela noite talvez vejas uma alma esverdeada a subir aos céus. Mas não esperas, que no café a cerveja é fresca e a televisão lá está com o grande relvado acabado de regar. A cerveja é fresca e os copos muitos. Entretanto secaram os olhos e todos voltaram a ser os mesmos de sempre, inimigos, injustos, insensatos e imorais. O senhor padre troca as palavras mágicas por três "ais" na cama da sobrinha e dia um do mês que vem lá irão todos pôr as velas vermelhas a arder.

Sentir a horas marcadas deve ser uma coisa estranha.

3 comentários:

Sónia disse...

... e o pior é que é mm assim... pelos menos mts vzs é...

Ella disse...

Desta vez fizeste-me tu lembrar um poema do Alvaro De Campos...

"Fazes falta? Ó sombra futil chamada gente!
Ninguen faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti, correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros exisitres que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros? Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
(...)
Primeiro é a angústia, a supresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
(...)
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o principio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alivio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala de ti."

Duro. Muito frio e duro. Mas absolutamente verdade. Mundo estranho...

kalikera disse...

querer que jamais nos encontrem o corpo

Enviar um comentário