segunda-feira, 31 de março de 2008

Tic-tac

Lentamente os Homens transformam-se em máquinas movidas à força cruel dos ponteiros do relógio. Transforma-se o mundo também.

Pergunto-me se há uns bons pares de anos alguém desconfiava que hoje até os tectos e as paredes das casas iriam ser falsos.

Dou-me por feliz por ainda conhecer gente...

domingo, 30 de março de 2008

Memória

Porque a única coisa que queria era uma palhinha. Não queria saber dos sumos que se agitavam por dentro da máquina estranha que parecia saida de um estúpido filme antigo, não tinha sede sequer. Queria uma palhinha. Queria uma palhinha para espreitar por ela e ver o mundo muito maior. Queria uma palhinha porque sim e quase não houve quem fosse capaz de o perceber.

Para que raio se quer uma palhinha se não para beber o sumo? Parece ridicúla a pergunta... Não sei quem seria hoje sem o sumo que o homem magro que continua igual uma dúzia de anos depois me deu. Uma dúzia de anos passados e lá continua ele junto à praia atrás do balcão de madeira. Já não há máquina nem palhinhas nem gente sentada a ver o mar. Há o homem e o puto, agora uma dúzia de anos mais velho.

E no fundo, nada mudou assim tanto. Desta vez para nada queria o café amargo, só a cadeira do canto onde um dia me deram um sumo e um palhinha.

Mar

Ao longe, por maior que seja a tempestade, sempre calmo. Existe sempre a linha do horizonte, mesmo que se confunda com o céu. É possível que por vezes sejam até um só, ou então não. Só um engano para os olhos.

No entanto, de perto tudo é diferente. A calma linha do horizonte ganha vida e já não há mais a vontade de pegar nela, enrolá-la num novelo e sem ninguém ver, guardá-la bem guardada no bolso.

De perto as ondas batem com força nas pedras. De perto as ondas são enormes e assustam. De perto as ondas são pequenos e inofensivos navios de espuma. De perto as ondas não existem.

Sentado na praia o velho pescador fixa os olhos lá longe no fim do céu tentado perceber o que verá de perto mais logo. Bem sabe que por mais olhe nunca saberá com o que contar, sabe ainda que mais logo irá cheirar a maresia...

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"Visitou-me um velho amigo
Outrora solto em meu umbigo
Eu dei-lhe abrigo na prisão"

Ornatos Violeta, O.M.E.M.

terça-feira, 25 de março de 2008

O que não existe é assim

E depois há dias diferentes de todos os outros. Dias em que nem se é capaz de vez as caras que aparecem pela frente, quanto mais sentir os sorrisos que possam ter. Dias em que tudo é uma espécie de mancha verde vómito atravessada entre nós e o mundo.

Dias em que só o corpo existe, movimentos mais ou menos voluntários, só isso. Eis que então, como por magia, alguém estala os dedos e do meio de todos os sentidos perdidos na tão grande falta deles, acende-se mais uma vela, desponta mais uma ideia, fica-se a saber que lá longe as pessoas também são más e cobardes e que nada do que te conta meio mundo e pensa outro terço faz sentido.

Costuma chover no dia a seguir ao domingo de Páscoa por estes lados. Deve ter sido da falta de chuva. Há dias demasiado estranhos para terem existido. Se calhar é só um pedaço de sonho. Estas linhas nem existem fora da minha cabeça nem ninguém as poderá ler. Um sonho, isto tudo. E eu aqui. Faltou a luz lá do lado de fora. Deve ser por isso que o despertador ainda não tocou. Um sonho, isto tudo é um sonho e nada existe. Nenhuma destas letras, nenhuma destas palavras, nada disto do que penso dentro de um outro pensamento. Não existe. Não existe? Não vai ter fim...

segunda-feira, 24 de março de 2008

Gotas

Milhares, milhões, milhares de milhões de gotas de água e uma espécie de chuva que quase molha. Horas e horas, dias, meses e anos regados a água caida do céu.

Depressa se constroi a barragem que devagar encheu. Falta sempre qualquer coisa... Faltou espaço desta vez. Não transborda, rebenta. Pedras, cimento e peixes que por uns segundos sabem ser também pássaros sem asas nem penas.

Secam as nuvens e volta a brilhar o sol. Brilhará depois a lua de noite e a terra dará mais uma volta em torno de si mesma.

Talvez amanhã volte a chover. Talvez um dia os peixes voltem a voar.

terça-feira, 18 de março de 2008

Ironia

Perguntavam-me o porquê alguns, olhavam-me de lado outros. Nunca soube explicar bem. Ainda hoje não sei. Eram tantos os que falavam nos fantasmas guardados por esses sótãos fora. Tantas vezes olhava para eles e ria ao saber que passava tardes sentado sobre meia dúzia de esqueletos. Cada qual tinha uma história, sempre diferente, pois os dias raramente são iguais... Talvez fossem valentes guerreiros Romanos, ou então vulgares mendigos sem casa.

Talvez fosse tudo mentira e não houvesse mais que terra por debaixo daquele pedaço de chão pintado a vermelho. Pouco importa, agora que já não há pão quente às primeiras horas da manhã. Pouco importa, agora que não mais cheira a café fresco, se é que o café quente pode ser chamado de fresco, dentro das paredes cor de rosa.

Nunca soube responder aos porquês, mas sei hoje que fazia sentido. Fazia sentido andar uns bons metros fizesse chuva ou frio, fazia ainda mais sentido andá-los em dias de sol. E faziam tanto sentido as palavras que na altura nunca entendi.

- Secas ou frescas?
- Sei lá eu, mas têm sido sempre frescas. Secas desta vez...

Duas semanas passaram até cair a última noite em que as viste. E por acaso, mais uma vez por acaso, antes do último gole, disseste algo que não hei-de nunca esquecer. Passaram seis anos e as flores estão iguais. As que te deram depois apodreceram na terra fria. Pena que as tivessem dado só quando já não as podias ter. Chovia há seis anos...

Nau

Os dialectos alcoólicos a meio da noite, o velho conhecido aparecido do nada com a sua garrafa ambulante logo transformada em bar fixo. A oportunista encostada ao canto do balcão qual pássaro à espera de migalhas. Tantas quantas o bolo tinha.

Depressa o sol se mostra anunciando o fim do dia. Depressa o sol se mostra anunciando um novo dia. O fim seguido do começo. Ciclo vicioso, ciclo viciado. "Porque me apetece! e depois?". E depois não há distância nem horas nem nada.(Canta e ri a menina com o bolo nas mãos). Entre a chegada e a nova partida poucos minutos passam. Bastaram, não sendo muitos.

De volta. Encontro corpos espalhados pelos cantos da casa sem perceber bem porquê. Novo acordar, novo ir. É forte o vento desta vez, forte demais. Novamente dormem e vou. Vou e volto. E ao voltar penso que se calhar tudo não passou de um sonho. Talvez tenha estado também a dormir. Talvez. Talvez o sol não tenha nascido três vezes no mesmo dia. Talvez nunca tenha sentido os degraus debaixo dos pés. Apesar de tudo tenho a certeza que sorri.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Metamorfose

A linha invisivel de querer e sentir que separa o ser de todos os outros seres que existem à volta. Por vezes esquecidos naquele alheamento tão próprio de quem por momentos se esquece que mais mundo existe para além do pequeno ponto negro que lá ao fundo dá um pouco de cor à parede branca.

Muda o mundo entretanto. O olhar preso ao ponto, a alma presa ao olhar.

Das vulgares larvas surgem, surgiram, borboletas de mil e uma cores.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Ecos

"Se pedir peço cantando
Sou mais atendido assim
Porque se pedir chorando
Ninguém tem pena de mim"

António Aleixo

Falta sempre qualquer coisa...


Um destes dias, talvez num daqueles em que chove miudinho, hei-de inventar uma outra máquina. Por enquanto nada posso fazer quanto à materializadora de coisas vistas. Mas o impossível não existe, isso é certo e sabido, e nada me garante que, por um qualquer acaso, não haja mais que um monte de pixeis amarelados à tua frente.