sábado, 28 de fevereiro de 2009

E depois há os outros

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros…

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido…
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos…
Se queres matar-te, mata-te…
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! …
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo…

Álvaro de Campos

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Horas

O gelo derrete num barulho irritante. Um tic-tac diferente daquele dos segundos, como se o tempo tomasse outro compasso marcado por gotas de água. E num repente, entre duas, que vão caindo, notam-se coisas que nunca antes se tinham visto, como aquele rasgo pequeno no papel de parede já gasto, ou até mesmo as estrelas deixadas no tecto por alguém que gostava de adormecer a olhá-las. Perderam o brilho entretanto e já nem o sorriso desenhado na lua apresenta a mesma nitidez.

O crocodilo de neve desapareceu e há perguntas ainda sem resposta.

Porque é que os pinguins não congelam?

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

(0.01€)x2


E quanto podem valer dois cêntimos?

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Paprika

imaginem
um abraço
o meu queixo
pousado no teu ombro
e eu viajando
no teu cheiro
pelos trilhos do silêncio

é o cenário possível
de um homem sozinho
de cerveja na mão

sentado na varanda
olhando a lua
e a comer pimentos padrão
comê-los contigo era perfeito

como olhar esta cidade à noite
olhá-la contigo era pensar
noutras formas de ver

Manel Cruz, O Cenário Possível

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Clio

há uma linha-fio-se-seda à qual não se pode fugir nunca. as aranhas são muitas e todas "falam" com todas como se toda a vida fosse um qualquer "complot" engendrado por elas. recuso-me a matar uma aranha que seja. nem sei bem porquê, mas a história da teia fascina-me desde sempre.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Rua

As árvores vergam-se ao peso da água que passa e numa delas um melro de bico mais vermelho que laranja, canta, uma melodia quase tão melancólica quanto alegre. Deve sentir, concerteza. Deve sentir o frio nas asas, o arrepio na pele, o vento nos olhos... Mesmo assim, canta. Faz frio lá fora. Talvez tenha descoberto que as canções aquecem a alma.

Os melros têm alma?

Há tartarugas no alasca?

Caixa


"e bebo as palavras e quase que me engasgo"

Tururu...


"Andamos todos uma casa ao nosso lado"

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Estações - Brno



Estações - Bratislava




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

das mãos compridas

Houve um tempo em que os anjos da guarda sobreviviam e viviam felizes e contentes e faziam o seu trabalho das nove às cinco. Horas extra, se fosse preciso. Era outro tempo. Agora prostituem-se pelas ruas do seu mundo e esquecem-se porque existem.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

!Frio

Um crocodilo de neve abre a boca para o pato que não passa. Uma bola vermelha a voar por entre os ramos e tudo o que era verdade num repente transforma-se em quase nada.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

É bom saber que os há

ouvi dizer que o nosso amor acabou
pois eu não tive a noção do seu fim
pelo que eu já tentei
eu não vou vê-lo em mim
se eu não tive a noção de ver nascer um homem
e ao que eu vejo
tudo foi para ti
uma estúpida canção que só eu ouvi
e eu fiquei com tanto para dar
e agora
não vais achar nada bem
que eu pague a conta em raiva

e pudesse eu pagar de outra forma

ouvi dizer que o mundo acaba amanhã
e eu tinha tantos planos pra depois
fui eu quem virou as páginas
na pressa de chegar até nós
sem tirar das palavras seu cruel sentido
sobre a razão estar cega
resta-me apenas uma razão
um dia vais ser tu
e um homem como tu
como eu não fui
um dia vou-te ouvir dizer

e pudesse eu pagar de outra forma
sei que um dia vais dizer
e pudesse eu pagar de outra forma

a cidade está deserta
e alguém escreveu o teu nome em toda a parte
nos carros, nas casas, nas pontes, nas ruas
em todo o lado essa palavra
ora amarga, ora doce
repetida ao expoente da loucura
pra nos lembrar que o amor é uma doença
quando nele julgamos ver a nossa cura


não quis guardá-lo para mim
e com a dimensão da dor
legitimar o fim
eu dei
mas foi para mostrar
não havendo amor de volta
nada impede a fonte de secar
mas tanto pior
e quem sou eu para te ensinar agora
a ver o lado claro de um dia mau

eu sei
a tua vida foi
marcada pela dor de não saber aonde dói
mas vê bem
não houve à luz do dia
quem não tenha provado
o travo amargo da melancolia
e então rapaz então porquê a raiva
se a culpa não é minha
serão efeitos secundários da poesia

mas para quê gastar o meu tempo
a ver se aperto a tua mão
eu tenho andado a pensar em nós
já que os teus pés não descolam do chão
dizes que eu dou só por gostar
pois vou dar-te a provar
o travo amargo da solidão

é só mais um dia mau


para ver
para dar
para estar
para ter
para ir
pra ouvir
pra sorrir e entrar
para rir
pra voltar a tentar
pra sentir
e mudar
pra voltar a cair
para me levantar
para nunca mais tentar mentir
pra crescer
para amar

para ser o lugar
pra viver
e gostar de gostar de viver
pra fugir
pra mostrar
pra dizer
pra ter paz
pra dormir

pra fingir acordar

para ser derramar
para nunca mais tentar
mentir


vi do meu quarto a nuvem-mãe
em negra carga a par do fim
vibrou no vidro até se ouvir
eu abro a dor de ser quem sou
de tudo amar
vai pra casa
esquece a rua
que eu vi
hoje o tempo vai mudar

eu já trinquei a maçã
deixei-me olhar a fundo
mas eu acordo a cada dia
eu abro a dor de ser quem sou
de tudo amar
vai pra casa
esquece a rua
que eu vi
hoje o tempo vai mudar


estranha forma de acordar
que é estar pronto pra dormir
abre a porta e vê se o mundo ainda é teu
cedo vais-nos dar razão
como a vida nos convém
cedo irá arder nas minhas mãos

não vejo um homem para trás
não vejo medo para trás
não vejo portas para trás

meu mal é ver que eu vou bem

todo o mal e todo o bem
cedo voltará nós
inocente e trágica lição
se uma vida não chegar
hei-de ter cem vidas mais
quantas mais ditar o coração

não vejo estrada para trás
não vejo medo para trás
não há mais nada para trás

estranha forma de acordar
que é estar pronto pra dormir
abre a porta e vê se o mundo ainda é teu
cedo vai-nos dar razão
como a vida nos convém
cedo irá arder nas tuas mãos

meu mal é ver que eu vou bem


sente o nervo da manhã
vê como vibra para ti
vai ditar o rumo da razão
vê como olham para trás
vê como aguardam tua vez
do prisma inverso da ascenção
ascender
e acordei na minha cruz
a mesma carne
a mesma luz
um nada após a mortificação
e o melhor é que aprendi
a minha luta por aqui
voltámos a pisar o chão

dá-me a tua mão
e vamos ser alguém
a vida é feita para nós
acordar é bom
mais fácil é dormir
mas nem dormindo estamos sós

eu fui tão mau para mim
eu fui tão pouco para nós
bem que o meu pai quase me avisou
eu nasci sem entender
a forma certa de viver
até que a vida me ensinou
aprender
o que eu quis mostrar ao mundo
era tão forte e tão profundo
eu quase me afoguei na emoção
visitou-me um velho amigo
outrora solto em meu umbigo
eu dei-lhe abrigo na prisão
só que eu já não sei
mudou a força da razão
e não fui eu que a mudei
a vida tem um peso para nós
e pesa quando estamos sós

dá-me a tua mão
e vamos ser alguém
a vida é feita para nós
acordar é bom
mais fácil é dormir
mas nem dormindo estamos sós

O.M.E.M.
Oh mãe!

foi tão bom para ti
como foi para mim


leva qualquer eu a meu dia
da-me paz eu só quero estar bem
foi só mais um quarto uma cama
no meu sonho era tudo o que eu queria

quando alguém deixar de viver aqui
espera que ao voltar seja para ti
nada vai ser facil
nunca foi
quando alguém deixar de te dar amor
pensa que ha quem viva do teu calor
hoje é só um dia
e vai voltar amanha
e nao foi assim que o tempo nos fez
e fez assim com todos nós
e nao foi assim que a razao nos amou
e fez assim com todos nós
sao coisas
sao só coisas

se uma voz nos diz que é viver em vão
pra que raio fiz eu esta cancão
e se o fim é certo
eu quero estar ca amanhã
e nao foi assim que o tempo nos fez
e fez assim com todos nós
e nao foi assim que a razao nos amou
e fez assim com todos nós
sao coisas
sao só coisas

eu estou bem
quase tao bem
vê como é bom voltar a dizer
eu estou bem
quase tao bem
vê como é bom voltar a dizer
eu estou quase a viver


ao ver meu quarto aberto
alguém entrou
só no acender da luz
vê que eu não estou
eu jurei
quando eu voltar
ninguém mais vai entrar
para sempre eu vou esperar por ti

pára de olhar para mim
deixa-me ser alguém
tão cedo não vais ver ninguém

ao ver meu quarto aberto
alguém pensou
foi para mim que alguém assim o deixou
para quê mentir
se eu bem sei
que não há ninguém igual
para sempre eu vou esperar por ti

pára de olhar para mim
deixa-me ser alguém
tão cedo não vais ver ninguém

guardar cá dentro amor
não nos faz nada bem
quando cá fora o ódio quer entrar
fui morar pra paixão
pois eu sei
que não há melhor lugar
para sempre eu vou esperar por ti

pára de olhar para mim
deixa-me ser alguém
tão cedo não vais ver ninguém
eu só quero dar-te alguém melhor


eu vi que eu sou capaz
eu posso até sentir
isso vai fazer-nos tão bem
não nos deixei mentir
e agora tanto faz
vou dar o mundo a quem

e aparece assim
acendeu-se a luz
estão vivos outra vez

amar é bom se houver
no fundo de um de nós
alguma solidão
eu calo a minha voz
é tão bom ser mulher
descobrir quais são

e aparece assim
acendeu-se a luz
estão vivos outra vez
se é tão bom de ouvir
vivo para ti
até o nosso amor morrer

se eu não for capaz
eu espero vê-lo em ti
eis como me ajudar
sentir não é mostrar
e dar não é sentir
é morrer em paz

e aparece assim
acendeu-se a luz
estão vivos outra vez
se é tão bom de ouvir
vivo para ti
até o nosso amor morrer

mas deixa o nosso amor morrer


foi como entrar
foi como arder
para ti nem foi viver
foi mudar o mundo
sem pensar em mim
mas o tempo até passou
e és o que ele me ensinou
uma chaga pra lembrar que há um fim

diz sem querer poupar meu corpo
eu ja nao sei quem te abraçou
diz que eu não senti teu corpo sobre o meu
quando eu cair
eu espero ao menos que olhes para trás
diz que não te afastas de algo que é também teu
não vai haver um novo amor
tão capaz e tão maior
para mim será melhor assim
vê como eu quero
e vou tentar
sem matar o nosso amor
não achar que o mundo é feito para nós

foi como entrar
foi como arder
para ti nem foi viver
foi mudar o mundo
sem pensar em mim
mas o tempo até passou
e és o que ele me ensinou
uma chaga pra lembrar que há um fim


dá notícias do fundo
como passam teus dias
diz se a razão nos chega para viver
se amor nos serve
amor não dá de comer
fico melhor assim
em todo o caso vai pensando em mim

se tocámos em alguma coisa
se me chamas por algum motivo
se nos podem ver
se nos podem tocar

meu desejo
é morrer na paz do teu beijo
sem futuro
é lutar por um beijo mais puro

eu vou estar sempre aqui
nada vai mudar
sinto-te arder no meu fundo
eu vou estar sempre aqui
nada vai mudar
sinto-te entrar no meu mundo
fundo

nós tocámos em algumas coisas
nós seguimos por alguns sentidos
se nos podem ver
não nos podem tocar

meu desejo
é morrer na paz do teu beijo
sem futuro
é lutar por um beijo mais puro


não vou procurar quem espero
se o que quero é navegar
pelo tamanho das ondas
conto não voltar
parto rumo à primavera
que em meu fundo se escondeu
esqueço tudo do que sou capaz
hoje o mar sou eu
esperam-me ondas que presistem
nunca param de bater
esperam-me homens que desistem
antes de morrer
por querer mais que a vida
sou a sombra do que sou
e ao fim não toquei em nada
do que em mim tocou

eu vi
mas não agarrei

parto rumo à maravilha
rumo à dor que houver pra vir
se eu encontrar uma ilha
paro pra sentir
e dar sentido à viagem
pra sentir que eu sou capaz
se o meu peito diz coragem
volto a partir em paz

eu vi
mas não agarrei


chegámos ao fim da canção
e paro um pouco pra dormir
é tarde pra voltarmos atrás
já nem há motivo algum para rir
é como ouvir alguém dizer
vê nessa procura
uma razão
pra virar a dor para dentro
que é virar o amor para dentro
falo de um amar para dentro
que é virar a dor para dentro

eu vou dizer até me ouvir
a dor chegou para ficar
eu vou parar quando eu sentir
não haver motivo algum pra negar
é como ouvir alguém dizer
vê nessa procura
uma razão
pra virar a dor para dentro
que é virar o amor para dentro
falo de um amar para dentro
que é virar a dor para dentro

chegámos ao fim da canção
e paro um pouco pra dormir

Ornatos Violeta, "O Monstro Precisa de Amigos"