quarta-feira, 29 de julho de 2009

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As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Bem sei que tudo é natural
Mas ainda tenho coração...

Boa noite e merda!...
(Estala, meu coração!)
(Merda para a humanidade inteira!)

Na casa da mãe do filho que foi atropelado,
Tudo ri, tudo brinca.
E há um grande ruído de buzinas sem conta a lembrar

Receberam a compensação:
Bebé igual a X,
Gozam o X neste momento,
Comem e bebem o bebé morto,
Bravo! São gente!
Bravo! São a humanidade!
Bravo: são todos os pais e todas as mães
Que têm filhos atropeláveis!
Como tudo esquece quando há dinheiro.
Bebé igual a X.

Com isso se forrou a papel uma casa.
Com isso se pagou a última prestação da mobília.
Coitadito do Bebé.
Mas, se não tivesse sido morto por atropelamento, que seria das contas?
Sim, era amado.
Sim, era querido
Mas morreu.
Paciência, morreu!
Que pena, morreu!
Mas deixou o com que pagar contas
E isso é qualquer coisa.
(É claro que foi uma desgraça)
Mas agora pagam-se as contas.
(É claro que aquele pobre corpinho
Ficou triturado)
Mas agora, ao menos, não se deve na mercearia.
(É pena sim, mas há sempre um alívio.)

O bebé morreu, mas o que existe são dez contos.
Isso, dez contos.
Pode fazer-se muito (pobre bebé) com dez contos.
Pagar muitas dívidas (bebezinho querido)
Com dez contos.
Pôr muita coisa em ordem
(Lindo bebé que morreste) com dez contos.

Bem se sabe é triste
(Dez contos)
Uma criancinha nossa atropelada
(Dez contos)
Mas a visão da casa remodelada
(Dez contos)
De um lar reconstituído
(Dez contos)
Faz esquecer muitas coisas
(como o choramos!)
Dez contos!
Parece que foi por Deus que os recebeu
(Esses dez contos).
Pobre bebé trucidado!
Dez contos.

Álvaro de Campos

sábado, 25 de julho de 2009

2

o corpo começa a falhar já os passos tantas vezes dados na mesma estrada de terra batida. o pó levanta mas agora não se aguenta no ar como dantes que o chão fez-se negro e duro. os combates são assim. a táctica do quadrado é demasiado velha e na escola não nos ensinam outras. na escola também não ensinam que a vida é uma puta gorda nas pernas e de tatuagens desbotadas nos braços que engata nas tascas escuras da cidade deserta pelo pôr-do-sol. são coisas que se vão aprendendo à beira de um balcão velho. mas a rotina é assim e depois é demasiado estranho não haver uma luz pequena a amparar o inicio do sonho, do sono, dos sonhos. quase absurdo as varandas continuarem a cair pelo rio mas agora sem gente sentada nelas. o tempo tem destas coisas e depois as pessoas vão ficando confusas quando vêm almas arrastadas em direcção a qualquer coisa que nunca pensaram querer mas vão querendo porque as histórias são quase todas como aquela dos macacos na jaula. como aquela coisa de querer imensamente uma sardinha assada. as canções ainda são aquilo que vão aguentando o mundo mas só em certos dias que nem sempre se pode jurar tudo e mais alguma coisa e na verdade há vidas que cabem até entre duas paragens de autocarro e outras que não iriam caber nunca nem numa imensa volta ao mundo. são maneiras de achar o que se vai sentindo e vendo. mas os autocarros têm o defeito de não serem comboios nem andarem sobre carris. de qualquer maneira há agora uma luz diferente a entrar pela janela. as cortinas passam a ser coisas muito estranhas quando nos damos a viver num mundo sem elas. bolas pretas numa folha de papel diferente, com letras e desenhos e linhas que são estradas e linhas. bolas pretas que hão-de passar a vermelhas quando o papel for outro. a lua agora é também ela uma linha fina fina para daqui a poucos dias ser também uma bola. amarela. a propósito encontrei ainda esta semana um homem assim. amarelo. mas mais pau que bola. coisas que a tal puta de tatuagens desbotadas nos braços faz quando o dia nasce. dizem que dorme nunca, embora não o acredite. acredito nas formigas e nas abelhas muito embora prefira as primeiras às segundas, acredito também nas aranhas e nas cidades imperfeitas com pedaços de chão esburacados e escadas polidas por milhões de passos e palavras. trinar é uma palavra linda.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

e a cada dia que passa cada noite é como que um poço cheio do nada mais negro que pode existir. um vazio profundo e avassalador que corrói a alma. a cada pôr do sol o medo de que a manhã não surja depressa. a angustia das horas que teimam em não passar. o horror dos sonhos. e pensar que em tempos a noite era uma dádiva das horas que corriam depressa demais

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ouvir as vozes que falam de cavalos e sangue nos cavalos que dançam a meio da tarde por entre o pó que se levanta do chão. e depois ver um chapéu ao longe na cabeça de um puto que podia não o ser. o sol vai caindo, arrastando o dia para outras terras mais distantes e a lua por enquanto ainda se mostra... pela manhã mais alguns hão-de partir rumo a outro mundo num outro lado da bola a que se dá o nome de terra. achatado nos pólos, o globo. o fumo, as cebolas ou qualquer outra coisa fazem com que os olhos se molhem.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

do(s) Mundo(s)



no fundo são só pedaços de frango e diferentes maneiras de olhar para eles.

"há quem viva sem dar por nada
há quem morra sem tal saber"


(e são seis minutos daqueles que valem a pena...)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

do ar

Na escola, por entre dois chutos na bola rota ouvia falar de medidas e números e distâncias. Metro, decimetro, centimetro. Segundo, minuto, hora. Fez-me sempre alguma confusão a história do ano-luz, como se fosse possível entender na altura que até a luz se move. Tudo tão certo e alinhado. Depois chovia em pleno Agosto e ninguém percebia nada.

Mas as medidas são só mais uma coisa que o homem inventou por ser incapaz de ver o mundo como na verdade é. A mania crónica de pôr tudo e mais alguma coisa em caixas quadradas demais, mesmo que a olho nú a maioria dos objectos nem tenham forma. Medidas, caixas, etiquetas, rótulos...

Como se três horas e meia alguma vez pudessem ser diferentes de três horas e meia, como se dois cêntimos fossem mais que duas reles peças de metal, como se os relógios pudessem parar as horas todas durante a noite e fazer a manhã tardar por dois dias, como se tudo isto fosse possível. Como se o mundo todo estivesse à distância de um sono mal dormido embalado por um roncar de motor...

Como se. Como se tudo fosse verdade para alguns sendo mentira para outros, como se fosse possível haver maneiras diferentes de olhar a lua em dias que se mostra cheia, como se fosse possível haver mais que um deus aos olhos de quem o acredita, ou até, como se algum dia pudesse o chão abrir-se em dois ao som de um qualquer leão imaginário a rugir.

Prefiro o caos das formas às caixas quadradas, que me desculpe a "Humanidade".

quinta-feira, 9 de julho de 2009

quarta-feira, 8 de julho de 2009

o lado e a garrafa. a mão do corpo sem nome e a tua, também ela quase sem cor, quase sem brilho. o negro da noite salpicado a pontos de luz pelo brilho das estrelas e numa outra parte do mundo, ou talvez aqui ao lado milhões de almas viajam em comboios que levam a todo o lado e a lado nenhum.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

#33

"E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida..."

Fernando Pessoa

sexta-feira, 3 de julho de 2009

#32

no fundo do poço cai o corpo na lama mole. desfaz-se a carne, perde-se a alma, sobram os ossos. o poço não tem fundo. o poço tem lama no fundo. as fendas nos ossos contam as histórias que nunca chegaram a ser palavras. histórias de um tempo em que se marcava o corpo ao ritmo das quedas no chão por entre choros e gargalhadas.

no fundo do poço, na pouca água que ainda resta na poça pequena boiam sorrisos e olhares mais uns quantos pedaços de mãos partidas pelo tempo. o mesmo tempo que cavou o poço até este não ter fundo onde repouse a água. onde descansem os ossos. onde morra o corpo cansado da vida vivida a correr por entre os espaços que as horas abriram no velho relógio cheio de pó. faltou-lhe a corda, parou o tempo. deve ter sido por isso que os dias se tornaram todos iguais e os gestos se passaram a esconder no mesmo baú onde se foram fechando também as palavras e as entrelinhas a sete chaves, logo torcidas até partir.

Definições

Casa é a rua e o banco pintado de verde, as pedras frias do chão e a chuva a molhar a cara. Casa são sorrisos abertos e trapézios pendurados no tecto. Casa é o relógio parado. Casa são escadas castanhas debaixo de estrelas. Casa é uma mão. Casa é uma canção a meio da noite. Casa é tudo o que não há-de caber nunca entre quatro paredes e um telhado.