domingo, 31 de janeiro de 2010


tão estranhas, as nossas entranhas.

31 anos depois III

"Entretém-te meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti, se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canadá ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso, se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo! Descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acho normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar!"

José Mário Branco, FMI

sábado, 30 de janeiro de 2010

a luz

a luz é uma coisa boa porque sem luz não se consegue ver. os cegos não vêm. quem consegue ver vê coisas. as coisas podem ser coisas lindas ou coisas feias. as coisas feias podem desaparecer se forem mortas. para haver luz é preciso qualquer coisa que dê luz. uma lâmpada dá luz. as casas têm lâmpadas. é por isso que de noite se consegue beber água da torneira.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

da(s) memória(s)

"Primeiro levaram os comunistas,
mas eu não me importei,
porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,
mas a mim isso não me afectou,
porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,
mas eu não me incomodei,
porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir,
chegou a vez dos padres,
mas como eu não sou religioso, também não liguei.

Agora levaram-me a mim e,
quando percebi,
já era tarde."

Bertolt Brecht


Não saber é muito mais fácil. Não querer saber. Afinal foi tão longe. Tantos quilómetros, tantos anos. Tão longe…

E no fundo, as coisas, todas elas, só têm a importância que lhes quisermos dar. Dos metros não sei, ouvi dizer que passaram sessenta e cinco anos -nós e a mania do lustro-. Tanto tempo para aprender…

Há uma história que mete uma rã e uma panela de água fria. E um fogão. Dá até para ver ao vivo na cozinha mais próxima. Pega-se numa rã, viva, e mete-se dentro de uma panela de água a ferver (um tacho é melhor, se não houver convém que a panela não esteja cheia). A rã salta, ou pelo menos tenta. E se a rã for posta em água fria? E se se aquecer a água devagar? E se a rã se for habituando ao calor até morrer cozida?

Histórias simples que se lembram enquanto se espera para ter um cartão novo, mega moderno. Vamos passar a ser um número. Um destes dias já nem importa dar nome aos putos. Imagino o alívio dos  futuros Ermenegildos.

Há outras coisas que também se pode. Agora até é mais fácil a vida de tantos... Gasolina? É ir às bombas, atestar, e dar o nome e o número ao senhor que lá trabalha -se existir, claro está-. Não pagar deixou de ser crime, ouvi hoje nas notícias.

Andemos então para a frente. Nada nos falta... Mais dia menos dia poderá aparecer o cinema restaurante. Um comprimido antes de entrar para matar a fome, ração de combate barata. E depois iguarias a desfilar à frente dos óculos suados por mil caras famintas. O abrir da boca -real- e o mastigar -imaginário-, um aroma fantástico. A felicidade dos tempos modernos. Arranja-se de quando em vez um distrair de qualquer coisa para mudar de assunto e eis quase tudo. Já agora a gripe A é uma doença fodida não é?



















 





há sessenta e cinco anos os russos encontraram no meio do nada polaco seres bípedes de pijama azul. tinham frio e fome. alguns deles eram, ainda, Homens.

domingo, 24 de janeiro de 2010

O frio especial das manhãs de viagem,
A angústia da partida, carnal no arrepanhar
Que vai do coração à pele,
Que chora virtualmente embora alegre.
 
Álvaro de Campos

sábado, 23 de janeiro de 2010

apodis

e foi, um dia, mais que um até.

porque as pessoas são esquecidas.

afinal as estrelas estão sempre sempre lá em cima. mas não as vemos com o ofuscar do sol.

e era isto e coisas simples demais para que alguma mente as pudesse complicar que se deviam ouvir pelos altifalantes que nos cercam todos os dias. mas as pessoas são esquecidas. é esse o problema.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

...

lei
s. f.

Preceito ou regra estabelecida por direito.
Norma, obrigação.
Religião.
Relação constante entre fenómenos da Natureza, ou entre as fases de um mesmo fenómeno.
Quantidade de metal precioso que deve entrar em cada quilograma de metal preparado ou cunhado.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

...

fora-da-lei
adj. 2 gén. 2 núm. s. 2 gén. 2 núm.

Que ou quem vive à margem das leis criadas pela sociedade. = CRIMINOSO, MARGINAL

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

da normalidade

conheço alguém que rapa o cabelo e tem um taco de basebol e o Mein Kampf no quarto.

31 anos depois II

"Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia: «não é nada comigo, não é nada comigo», né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada: precisas de paz de consciência. Não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém, e atiras as culpas para os da frente..."

José Mário Branco, FMI

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

de facto

o mundo tem uns conceitos de normalidade algo estranhos

31 anos depois I

"Entretém-te, filho! E vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada! Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos, com computadores, redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!"

José Mário Branco, FMI

domingo, 10 de janeiro de 2010

das voltas

"Mundo puro e circular: quatro senhoras inventaram a diplomacia rotativa do bolo. Uma fez um toucinho-do-céu e deu-o a outra para agradecer um favor, esta passou o bolo a uma terceira por causa de uma festa,  a terceira não o serviu na festa e, como devia um bolo a uma colega, deu-lho mas fazendo de conta que a obra era sua, e a colega finalmente, lembrou-se de fazer simpatia a outra amiga, um toucinho-do-céu a pensar no futuro. E a verdade é que a merda do bolo deu a volta a quatro frigoríficos em quatro dias, de travessa em travessa a secar a capa de açúcar, escurecendo a baba do ovo, perdendo o odor da amêndoa para, finalmente, reentrar em casa da mesma senhora que o tinha cozinhado e que, sendo diabética, não o podia comer, embora comesse, as nossas diabéticas comem doces até cegarem ou perderem as extremidades por amputação.
   - Espero que goste, dona Natalina, tenho um fraco no ponto-rebuçado.
   - Olhe, leve já o naperon, por acaso não é meu. É a única coisa aliás.
Universo que expande e encolhe, nódoa de chávena numa mesa de café."

Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010