domingo, 10 de junho de 2012

das anologias com mangas e máquinas de secar ou o dia que não o é do país que ainda o quer voltar a ser

Como vais tu morrer
em portugal
que te assenta de igual modo à camisola
que lavaste no programa errado;
Como vais vender os teus versos
ao preço da chuva
num país de cheias
e lágrimas fáceis;
Como vão as tuas palavras
arder no coração daqueles
que vêem as florestas
sucumbir ao fogo
todos os verões;
Como vais ficar em nada
como o gelo no whisky
no copo da mulher
que o teu marido ama;
Como vais, tu, abrir os braços
se só já tens penas
como o pobre Garção?

Ana Paula Inácio

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Fe

flor. uma cortina verde-castanha-riscas à frente do palco arredondado, antes branca. é o mundo grande-pequeno visto do pássaro de ferro com asas de ferro também.

onomatopeias agora. clac clac, vrrrrr vrrrrr, pfffff pfffff. vira um pouco e torce-se a vista. tanta volta para chegar ao mesmo sitio.

começo.

a flor-conjunto-de-átomos e os povos das (re)encarnações ou (re)florações se é que as acreditam é que devem ter razão. eis. é o ferro desta vez. ferro espada, ferro sangue, ferro cheiro, ferro cor. boi, a chave.

do alto, a cortina branca foge, abre e deixa perceber a outra, a tal verde-castanha ora riscas ora quadrados ora o bonito não padrão. há mais debaixo. terra. o mundo por baixo do mundo e lá, lá fundo, a emergir, o ferro. o mesmo do sangue nosso e das ervilhas, o mesmo da ponte feita por medida, o de que é feita a cor que o pinta, o dos barcos, o de quase tudo.

flor. é de ferro o xilofone que toca melodias flor e horas no por entre o pó de um dia de sol.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Phaseolus vulgaris

Imagina-te de novo de volta à escola. O quadro preto em frente, a cruz por cima, um cristo magro e pintalgado de verde a olhar para o vazio.

Dois mais dois são quatro sem nunca se explicar ou perceber bem porquê. Números são números e estes não enganam. Tudo isto na altura em que havia um senhor de fato preto às riscas a convencer-nos que o também o algodão podia ser um número. "Não engana" dizia. Falava do algodão.

Um frasco. Protocolo (palavra nova só mais tarde aprendida já em quadro branco, não melhor que o preto). Material: àgua, armário, frasco, algodão, feijão e sol.

Depois era o feijão no frasco e o ridiculo de tudo aquilo num lugar onde depois das quatro nos rebolávamos pela terra.

Era na terra que a realidade fazia mais sentido. Um dia despontava um pouco de verde, no outro uma outra folha, regar, mais uns centimetros dia após dia. Esperar. Devagar até ao grão final.

Lição primeira: é preciso tempo;
Lição segunda: a história do João pode ser verdade numa tarde de sol;
Lição terceira: por mais que repetidos sejam os gestos nunca o resultado é o mesmo.

Três lições num feijão. Hoje em dia já não devem aprender estas coisas na escola. Muito menos terão terra para a cheirar molhada.

Fim.

Irrita-me a urgência dos tempos mais modernos que os do senhor Charlie. Vi, sem ver, alguém chorar por não ver um filme no dia da estreia.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

dos impérios que não caem




sonhei esta noite com o FMI. fazia sol. estava ali na praça do imperio e eram cinco. iamos reunir nos jerónimos. escorriam restos de marisco pelo canto da boca. alimentam-se bem, pensei. acordei depois. nem tempo tive de lhes dizer de quem é a culpa de tudo isto. dos espelhos. os espelhos pendurados pelos cantos que fazem as pessoas sorrir mais para elas do que para os outros. eles que venham. os impérios não caem. talvez seja por isso que se pede pão de maneira igual em mértola e tokyo. e somos maiores. maiores que eles mesmo que debaixo do braço tragam pastas ruças pelo tempo e cheias de notas. é bonita a nossa terra. e tem também jacarandás. e barcos. e mar. e um império em forma de praça. e o outro.

domingo, 5 de dezembro de 2010

a distância lá no muito alto mede-se em pés

Quatro e meia da tarde. A cidade grande aos pés. Homens formiga e carrinhos de brinquedo. Da varanda vejo o longe pintado nas latas dos aviões que vão passando, como uma maçã de Carrazeda de Ansiães, vejo o Tejo já sem falar espanhol, consigo ver a outra banda até em dias como não hoje, de cinza e água caída em gotas.

Sopro o café vindo sei lá de onde. O cheiro quente do grão abafa o de alguma gota de suor caída meses antes. Quero que seja do Brasil, dá-me jeito, até porque é fácil de imaginar com a cabeça do Rei um pouco à vista. É novo. Soube que fez cinquenta anos há pouco tempo.

Arrefece, não gosto de café quente. Tic-tac e volto à cadeira. A partir de agora é China. Os chinesinhos alinhados de cara igual para um dia igual ao outro igual ao outro igual de cara igual a colar pedaços de ouro com colas estranhas. Os computadores são feitos de ouro sabias? Também de silício mas isso seria outra conversa que iria terminar num vale. Pena não ser o vale do Ave. Pena que por lá já não se transformem partes de ovelha em almoços e camisolas. Talvez em almoços ainda. Por enquanto. Tenho os pés aquecidos por três putos tailandeses cheios de fome e tosse convulsa. 

Tal como a cerveja, o café é um diurético. Carrego no botão e imagino a tainha de boca aberta para a fotografia. Mais uma semana e a capital do país onde vivo deixará de ter os esgotos ligados directamente ao rio. Coisas que o progresso faz. Não sei se alguém pensou na desgraça dos peixes, falta-nos o pregador Vieira.

Suspiro. É tarde. Na rua o queixume de sempre. Ou faz sol ou frio, acaso chove, nevar, isso, já é raro. Uma desgraça, no fundo. Dizia o poeta que “não importa sol ou sombra” mas a verdade é que tudo importa demais. De duas ribeiras nasceram as duas principais avenidas da cidade, sabias? A da Liberdade, liberdade, fica melhor assim com letra pequena e a Almirante Reis, o homem que com medo de morrer se matou sem que fosse preciso, a vergonha é uma coisa fodida. Eram ribeiras as avenidas. Teorizo que talvez as pessoas se assemelhem a água, eventualmente tem que ver com os setenta e tal por cento, basta um olhar pouco atento para ver onde se vão estendendo os corpos que pouco já vão devendo à outra parte do mundo, e a esta também, afinal. Lá estão eles nas ribeiras antigas, nas margens, a confluir lentamente para baixo, cada vez mais para baixo, fundo. Diz-se que no dia em que um dos elefantes fugir do zoológico poderá passear por baixo da rua Augusta sem grandes apertos. Dos corpos na margem digo que não gostam de maçãs. Até os esfomeados têm direito a ser esquisitos, percebo-os, mas deixei de dar chocolates.
Hei-de aprender a dizer alguma coisa em Indiano.

Nem tudo é mau, desenganem-se os que nos querem dar como perdidos. Temos agora também blindados. Dão um jeito enorme para as cimeiras. Podem dar jeito para quando numa eventualidade desmentida por todos os quase mil anos de história o povo pegar em tudo o que tiver à mão e marchar rumo a qualquer lado (guardo num postal a preto e branco memórias bonitas de outros tempos no largo do Carmo) para espetar uma facada nos organizadores desta excursão reles prometida para o céu mas onde pelo caminho apenas se vêm placas a indicar o abismo. 

Já comprei o pão para a noite. Dezasseis cêntimos. Trinta e dois escudos, um pão. Ainda puto, levava cinquenta escudos para uma manhã de escola, cem para o dia todo. Pão, sumo, batatas fritas e rebuçados. Já fui rico.

Ainda não sei dizer uma palavra em Indiano, apesar de ter mais indianos que Portugueses como vizinhos.
Perdi a fome com tudo isto. Antes de ir sonhar com a paz nuns braços pequenos de sorriso aberto vou à janela olhar para a lua escondida pelas nuvens. E lá, na lua que não vejo, milhões de olhos reflectem luz e sonhos também. Talvez maiores que os meus, que os nossos todos juntos. 

Sete andares abaixo, os homens parecem menos formigas e mais humanos. Coisas piores, portanto. Quase todos. Quase…

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

cinco

a gota de água à escala da formiga. depende da formiga, depende da água. a descrição da gota de água, separada de todas as gotas de água que são a chuva, observada à escala da formiga. depende, ainda, da água e da formiga. trocar a formiga por aranha. muda o quê? muda? trocar a água por pó. grão de pó do meio dos olhos de um beduino. camelo. baba.

agora a sério. não sei porquê mas engano-me a escrever a palavra água. troco o acento. assento. àgua. brincar. com as palavras também. livro? riso encolhido. nomes estranhos. de novo. agua. o salazar caiu de uma cadeira, o salazar é uma espátula, os cavacos queimam-se na lareira. o cavaco é de pau. que se foda o cavaco. pim!. (obrigado Almada)

tempo

o tempo

o tempo à escala humana e do universo. à escala dos milhões de planetas e homenzinhos verdes talvez azulados. sei lá. o tempo à escala da humanidade e da vida. gota de água. formiga. cronómetro. pessoa. 

acordar

o homem vestido de branco usa sapatos vermelhos. nas colunas faz frio. vendem-se dinossauros dados. o tempo. dinossauros no seculo XXI. dragões são dinossauros com asas que cospem fogo a pilhas. o fogo dos dragões não serve para aquecer mãos. mãos aquecem mãos. olhos são espelhos-porta e o coração é mais que algo bom para arranjar de cebolada. soubessem as tainhas de tudo o que se lhes passa por perto. soubessem elas... 

o tempo à escala humana. cinco meses de humanidade são pouco mais que mortos e vivos contados em estatistica bonita. cinco meses de humanidade. suspiro. mas a minha humanidade é maior que a do mundo. é a minha. egoista. egoista. outra vez egoista. cinco meses. não quero saber dos minutos. prefiro ir juntando os segundos no bolso, junta-los com os barcos e os pés e os grãos de areia e as marés vivas do tejo à uma menos vinte e os peixes artistas e os poços mágicos e tudo tudo tudo. sei de uma humanidade parecida. sorriso. sei de um rio ribeirinho fio de água que até uma formiga seria capaz de atravessar.

é outubro. dia 13.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

de um son(h)o na outra banda

há um rio. dizem-no grande mas a conversa das medidas soa-me a falso há já muito tempo, nem sei bem porquê. ou talvez saiba, de cada vez que a espécie de jangada laranja recolhe as cordas de terra. ou isso ou o bater constante de ferro (adivinhar a cor. do ferro). os comboios são de ferro. também de plástico e esponjas e coisas que pouco importam para isto de rio e medidas. a ponte é de ferro.

tenho um qualquer problema em organizar datas, mas ainda sei quantos dias demora a lua a dar a volta que é a volta que a terra dá à lua ou uma qualquer espécie de vice-versa ou isso mesmo. vinte mais oito. e sei de plataformas de madeira por debaixo da cor. e de subir carris. e de putos no meio da rua em vésperas de Santo António. e de muito mais coisas. o macaco (?) na parede, por exemplo.

e o rio é grande. assim dizem. é grande. grande. mas tão pequeno. pequeno. minusculo. ribeiro saltado a passo na vontade de um estender de mão. as mil e uma leis da hidraulica condensadas em nada. o rio é um fio de cabelo feito água. o rio está ali mas parece nada. o rio é grande. há, contudo, coisas imensamente maiores (uma palavra de quatro letras apenas é um bom exemplo).

sexta-feira, 23 de julho de 2010

também de um relvado sintéctico algures no oeste por entre os moinhos que D.Quixote não viu

são dias. são histórias e são horas a pingar histórias no correr dos dias. é qualquer coisa assim ou algo parecido. sonhei outro dia com um alfarrabista do tempo. talvez seja profissão de futuro. um pouco de mil  novecentos e catorze e bancos de palha se ainda houver. alguns cêntimos, ou escudos, talvez reis, dinheiro romano, azeite grego. tábua de barco. colinas trilhadas por carris e pés.

o tejo ja não tem canoas, o que é uma pena. tem tainhas e merda fresca ao fim da tarde quando a maré está baixa. devia haver qualquer coisa em atravessar o tejo numa canoa. se bem que o barco bebedor de nome serve bem para ver o lençol estendido cada vez mais perto. pontos de luz. luz.

ainda tenho uma aranha.

tenho uma aranha pendurada no tecto. tenho uma teia de aranha pendurada no tecto. estou em crer que a dona se passeia pela casa enquanto não estou. comem formigas também, as aranhas. deve ser por isso que teimo em não limpar as migalhas espalhadas pelo chão. ou por qualquer outra coisa.

seja como for, gosto de tapetes que não o são.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

e uma nuvem

"Vem por aqui" -dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí.

José Régio, Cântico Negro