sexta-feira, 23 de julho de 2010

também de um relvado sintéctico algures no oeste por entre os moinhos que D.Quixote não viu

são dias. são histórias e são horas a pingar histórias no correr dos dias. é qualquer coisa assim ou algo parecido. sonhei outro dia com um alfarrabista do tempo. talvez seja profissão de futuro. um pouco de mil  novecentos e catorze e bancos de palha se ainda houver. alguns cêntimos, ou escudos, talvez reis, dinheiro romano, azeite grego. tábua de barco. colinas trilhadas por carris e pés.

o tejo ja não tem canoas, o que é uma pena. tem tainhas e merda fresca ao fim da tarde quando a maré está baixa. devia haver qualquer coisa em atravessar o tejo numa canoa. se bem que o barco bebedor de nome serve bem para ver o lençol estendido cada vez mais perto. pontos de luz. luz.

ainda tenho uma aranha.

tenho uma aranha pendurada no tecto. tenho uma teia de aranha pendurada no tecto. estou em crer que a dona se passeia pela casa enquanto não estou. comem formigas também, as aranhas. deve ser por isso que teimo em não limpar as migalhas espalhadas pelo chão. ou por qualquer outra coisa.

seja como for, gosto de tapetes que não o são.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

e uma nuvem

"Vem por aqui" -dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí.

José Régio, Cântico Negro