quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Falhas

Mal deixaste o bibe sujo, vestiste o fato novo. Tanta foi a pressa que te esqueceste de experimentar as calças largas. Não mais te sujaste, não voltaste a rebolar no chão que os fatos são caros e a vida não está lá muito boa para gastos...

Não quiseste mais saber do que foste nem dos que foram contigo. Agora, na secretária de vidro com vista para os barcos que ao longe vão largando pequenas nuvens de fumo negro, agora que os dias não acabam mais ao pôr do sol, agora que já não te escondes no arbusto nem te atiras ao poço de lama, agora que já não corres, pensas só nas horas e nos dias, nos anos e nos meses, acumulas certezas e planos sem mais te lembrares dos momentos em que foste a pessoa mais feliz do mundo só por ter um prato acastanhado e sujo nas mãos.

Porta. Elevador. Carro. Casa. Sofá. Noticias...
"... houve um enorme derrame de crude algures no mar..."
- Onde? Sabes?
- Foi mesmo perto de ti. Não viste?
- Não reparei...

Há quanto tempo deixaste de olhar o mar à tua frente?

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Poeira

Penso por vezes no mar de acasos que surgem dia após dia. Cada palavra, cada passo, cada sonho...

Pergunto onde fica o sentido. Que sentido fazem hoje as palavras de há tantos anos atrás? A fruta apodrece, as verdades mudam. Para que foi aquele grito? A viagem, o verde a ferir os olhos mal a noite tinha caido, a certeza de ser possível. O puto cresceu, a estrada mudou, o velho quase já não fala, a casa caiu. Pouco resta da tarde quase noite em que as pessoas se tornaram tão pequenas quanto os 200 metros de longe quiseram...

E a lágrima que não caiu? O gesto preso...

Somos feitos de quê afinal?

"Sabes, não me importei nada. Não conhecia ninguém... Até posso perceber que as pessoas de lá estejam tristes e sintam dor e tal, mas eu não estou!"

Hoje

Um vazio imenso. Só um monte de osso e carne que caminha sem rumo...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

#14

Vale a pena, vale sempre. Nem que seja só para ver o arco irís fora do céu.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

10 Anos

Parou nas paredes, nas mesas, no velho calendário pendurado no tecto, nas conversas... Depressa demais lhe marcou rugas na cara.

As duas velocidades do tempo, para lá da porta castanha.

Ratos

O barco descola lentamente. Rumo às nuvens. Larga o mar, mar chão, e vai. O velho marinheiro ajeita as barbas enquanto no convés os ratos escorregam e caem à água. Milhões de viagens fizeram, mas nenhuma como esta. Anos e anos a navegar. Algum dia teria de marcar a diferença.

Para trás fica a cidade fantasma, um monte de casas sem vida, sem som, sem gente. Vazia, oca, suja. No jardim, julgando-se louco, o novo mendigo aprecia o espectáculo por entre dois goles de um qualquer liquido esverdeado -o lixo de uns, a posse de outros- encontrado há um par de horas mesmo à beira do banco feito casa.

Corre agora, corre sem destino, acaba de o fazer. Estrada, escadas, ponte. Voa ao lado dos ratos. Plana de braços bem abertos, bate as asas devagar. Já não respira. Morreu a sonhar.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Leve

Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.

Alberto Caeiro

Home

Tive em tempos uma casa na árvore.
 
Não tinha tábuas
Nem escadas
Nem portas
Nem janelas
Nem nada. 
 
Mas ainda assim era uma casa. 

Ou se calhar era só um ramo grosso.
 
Todos tivemos em tempos uma casa na árvore
mesmo que nem sequer a árvore existisse…

Um dia
ao passar na estrada, reparei que a casa tinha sido demolida. 
 
Ainda hoje
há quem diga que só se cortaram uns ramos velhos e grossos.

Paredes

"As paredes têm ouvidos", ouço dizer há muito tempo. Descobri hoje que também têm boca. E falam.

(Podiam ao menos perguntar se queria ouvir. Não queria.)

Ups!

Primeiro levaram os comunistas,
mas eu não me importei,
porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,
mas a mim isso não me afectou,
porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,
mas eu não me incomodei,
porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir,
chegou a vez dos padres,
mas como eu não sou religioso, também não liguei.

Agora levaram-me a mim e,
quando percebi,
já era tarde.

Bertolt Brecht