sábado, 31 de outubro de 2009

scala (la)

é manhã e ainda ninguém sabe se o vôo levará os corpos a algum lado. está frio e ninguém sabe muito bem o que está ao lado. quase ninguém. estrada de ferro e a estação velha à chegada. a falta.

quase tudo é o que parece. as coisas a quererem sempre o mesmo. certo, certo, certo. depois há o resto todo. o resto que nem sequer importa, o que mal se vê para lá das luzes. o caminho que se abre pela rua fora, há uma rua enorme numa cidade grande e quase todos estão perdidos. quase todos. quase.

é manhã. é manhã e noite ao mesmo tempo. chineses que berram, velhos de pele caída a vaguear pelos cantos, olhares atirados contra as paredes e uma frase ecoa na mente "a morte toda...", "eu tenho a morte toda para dormir...". faltas e há uma luz que se acende.

estamos em todo lado. não há praça nenhuma do mundo onde não estejamos. nas pombas, nas pedras, na velha de lenço preto ou até mesmo numa montra qualquer. estamos em todo o lado. eis o império.

depois, os rios correm sempre para o mar de uma maneira ou de outra. as barragens rebentam, as pontes caem. as portas fecham-se e faz frio na rua-casa-cama. "não há longe". apesar de ser infinito. o ar pode faltar em dois lados ao mesmo tempo e há coisas que só se descobrem quando se sentem.

há coisas que só se descobrem quando se sentem.

a vida é curta demais para nós que havemos de passar tanto tempo mortos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

amigo, não tenho perguntas para fazer-te. quantas
pessoas entendem aquilo que não entendo? quem
descobriu o segredo mais inútil?

amigo, não tenho perguntas para fazer-te. basta-me
olhar. passaram anos, poderiam ter passado mais
anos ainda. poderiam passar séculos.

entendo o teu rosto. isso basta-me quando te vejo.
para mim, serás sempre o príncipe, a criança que
me mostrou as árvores.

o tempo não passou, amigo. agora, ao chegares,
olho para ti. o teu rosto é igual. agora, ao chegares,
sei que nunca partiste.

José Luís Peixoto, Príncipe

terça-feira, 27 de outubro de 2009


azar



eu conheço um homem que tinha dois filhos, dois irmãos e uma irmã. o homem tinha dois sobrinhos e a irmã puta de profissão. o homem estava a fazer uma casa e tinha dois filhos e uma mulher. o homem achou por bem não deixar os sobrinhos serem entregues a uma qualquer instituição. o homem tem agora dois filhos e dois sobrinhos para alimentar e ensinar a ler. o homem acha que devia ser ajudado de qualquer maneira pelo estado. o estado acha que não.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

côco

O mofo tem o mesmo cheiro de sempre por mais luz e ar que circule por entre o chão e o tecto. Mais longe, a vista de sempre é igual. As árvores que crescem devagar como se o não fizessem, o correr do rio, o embalar das folhas pela brisa da tarde, um comboio ocasional... Hoje, cheiro a tinta verde com que mãos vagarosas pintam a casa pequena.

Creio que poderiam passar mil anos e tudo seria igual. Mas virá uma ponte nova e o som do comboio ocasional será um constante rugir de motores furiosos, haverá ainda quem comprove que os carros são seres racionais que, de certo modo, absorvem a raiva de quem os conduz, como na natureza nada se ganha nem se perde estando tudo sujeito a uma infinita transformação, pode concluir-se que a raiva se transforma em som.
 
Rio por vezes...

-Tens ai um saco de plástico?
-Não sei, [procura e encontra um de papel meio roto] toma, serve?
-Serve pois...

Não servia. Ando e deixo-o no primeiro caixote do lixo que encontro, vou a pé pelo caminho que é ainda cicatriz, o latejar a cada passo... Mas precisava de um saco. Surge a epifania e o padeiro ajuda. As padarias costumam ter gente dentro às cinco da manhã.
 
-Bom dia, pode arranjar-me um saco de plástico?
-[…]
-[…]
-Serve?
-Sim! Obrigado! 
 
Procuro um espelho. Largo o saco. Volto para casa.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

algures sob o luar da patagónia um elefante anão uiva aos corvos albinos

terça-feira, 20 de outubro de 2009

sapiens sapiens?

descobri hoje a razão de não sermos os únicos a ter o polegar oponível. assim, é possível comparar certos exemplares da espécie humana ao, por exemplo, gambá.

descobri também o porquê da existência de noventa por cento das guerras do mundo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Mariposa


quarta-feira, 14 de outubro de 2009


depende






















terça-feira, 13 de outubro de 2009

e talvez agarre a madrugada

vi hoje um orangotango a lavar roupa. imitava o homem que tinha ao lado. lavou depois os braços e a cara. o orangotango não usa roupa. não precisa de roupa lavada, mas lavava roupa e sorria como é possível ao orangotango sorrir.