sábado, 6 de março de 2010

"farto do diz que disse
diz que viu
diz que aconteceu
diz que estava lá um amigo de um amigo
que é amigo teu
farto de ouvir
o mais bonito
o mais astuto
o mais sensível
mas o incrível
é que ao espelho eu só vejo o mais bruto
farto das mesmas queixas no mesmo caderno
farto da caneta que me leva ao inferno
farto de mim de ti de nós contra o resto do mundo
a selecção deles é mais forte
ficaremos sempre em segundo
ninguém te disse
ninguém te contou
ninguém te falou
não dá para ganhar

eles dizem
foge foge
mas eu fico
foge foge
e eu fico
cada vez mais bandido"

Manel Cruz, O canto dos homens-conto

terça-feira, 2 de março de 2010

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!...

Álvaro de Campos

domingo, 28 de fevereiro de 2010

sal

não sei o que é todo o dinheiro do mundo. ou ouro ou petróleo ou uma qualquer pedra ainda por descobrir e, agora, sem aparente valor. não quero saber quanto é. quero saber nada disso. não quero saber o que é deixar de contar trocos para o não sei o quê que há.de vir. almoço, comboio, barco, café, pão ou cerveja.

quem já viu matar um boi sabe de que cor é o sangue, quem já viu a cidade do alto sabe de que cores se pinta, quem se assusta com os pombos sabe que eles existem, e quem já leu pelo menos um livro na vida sabe que em alguma das páginas haverá pelo menos um centimetro quadrado de papel em branco.

não sei o que é todo o dinheiro do mundo. não quero saber. sei de sorrisos e palavras e da lua que hoje é cheia. sei de azulejos verdes nas paredes e gatos malhados na alcatifa suja. sei de mesas encontradas nas ruas e pedras nas mesas encontradas nas ruas.

quem já cuspiu ferro sabe o que corre nas veias. 

e sei, hoje, que há coisas valiosas demais para que alguma vez possam ser guardadas em cofres ou expostas em montras. talvez porque não existam. talvez por serem maiores que toda e qualquer existência. porque sim. e porque hoje recebi o melhor presente que conheci.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

coisas a fazer num futuro mais ou menos próximo


#1 atravessar a ponte 25 de abril a pé;
#2 inscrever.me na maratona para poder atravessar a ponte a pé;
#3 fazer de conta que vou correr a maratona para atravessar a ponte a pé;
#4 meter um tijolo com um selo colado e uma morada numa caixa correio;

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

onomatopeia para dedo a carregar num botão que, ao ser carregado, emite um pequeno estalido

a cidade. a outra. estendida como um lençol amarrotado. a cartografia mental embalada por passos grandes. o macaco azul numa esquina perdida e as pedras a falar por debaixo dos pés. só os outros se admiram com a nossa indiferença ao calcar, quase todos, arte feita de cubos bicolores. ingratos.

talvez cheirasse a alecrim, talvez noutros tempos, e, talvez, por isso os, nos, tenham posto ali no cimo da rua. um semi-cego de frente para um semi-louco e eis o semi-retrato do rectângulo à beira mar plantado.

o sol importa-se pouco com o que somos, a luz, essa é inteira.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010


"pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida"

Sérgio Godinho

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Kristallnacht

"Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?"
Álvaro de Campos

avança, recua. 1984, 2009. 2009, 1984. ortografia, língua, a evolução natural das coisas na linearidade do tempo circularmente abstacto. lentamente a caminhar. desta vez para trás...

palavras novas. bufo, ocorre.me e parece até já a ter ouvido em algum lado, talvez o mesmo contexto, talvez, talvez tenhamos de voltar a ter medo das esquinas.

e foi tudo tão fácil. foi tão fácil convencer.nos que precisamos de ter um telefonezinho sempre no bolso. tão fácil acreditar que precisamos de uma câmara em cada rua. tão fácil cair. e a puta da ratoeira é sempre a mesma. sempre sempre...

no dia em que acabarem definitivamente os loucos que ainda usam envelopes e selos, restarão apenas -mais uma vez- os vidros estilhaçados no chão como cristal.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

365
Fez um ano e as paredes mudaram de cor. No fundo foi isso. Uma mudança na cor das paredes. De resto tudo igual, tudo diferente, confuso, difuso…
Relativo.
Não há neve na rua. Mas há. Não há neve na minha rua. Tenho uma rua? Não há neve do lado de fora da janela do quarto. Qual quarto? Somos tão importantes que nem nos damos ao trabalho de situar os lugares. É tudo nosso. A janela, a rua, o mundo, a vida, a morte, as cinco ou seis gramas de ouro anel.

da escola

hidrogénio e nebulosas difusas. um compasso de espera, ou dois, depende da paciência de quem se encosta à parede e eis a estrela. estável. movem.se os ponteiros no sentido dos ponteiros da maioria dos relógios ou noutro qualquer. evolução. gigante vermelha ou super gigante, depende do tamanho. roda o cubo. anã branca, supernova, pulsar, buraco negro. relatividade, ano-luz, parsec, metro, pé, unha negra...

sabemos tanto de estrelas que nos esquecemos de aprender a olhar para uma cova.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

dos prefixos


"As pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca acabam."

José de Almada Negreiros