domingo, 27 de setembro de 2009

isto

farto do diz que disse
diz que viu
diz que aconteceu
diz que estava lá um amigo de um amigo
que é amigo teu
farto de ouvir
o mais bonito
o mais astuto
o mais sensível
mas o incrível
é que ao espelho eu só vejo o mais bruto
farto das mesmas queixas no mesmo caderno
farto da caneta que me leva ao inferno
farto de mim de ti de nós contra o resto do mundo
a selecção deles é mais forte
ficaremos sempre em segundo
ninguém te disse
ninguém te contou
ninguém te falou
não dá para ganhar
eles dizem foge foge
mas eu fico
foge foge
e eu fico
cada vez mais bandido


não sou luz da serra
nem sombra nem luz
nem sombra da noite
no alvor da madrugada
não sou coisa nem nada
talvez louco
o louco não tem número
o limite da soma é o vazio
não sou murmúrio de rio
nem cigarro viciado
nem ponta de cio
nem lua patética
crescendo e fugindo do tempo que passa
não sou quebra-luz
nem gavinha entrelaçada num abraço de frio
sete raios de sol queimaram o sonho
sete chuvas de esperma o fecundaram
já não sou resina
nem merda nem mijo
nem sangue nem seiva
morreram afrodites e leões de pêlo fulvo
quando se inventou a alma
e eu não sou mais do que rescaldo
já não sou poeta nem nada


Manel Cruz, "O canto dos homem-conto"

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