terça-feira, 24 de junho de 2008

Morfina

Há quem se esvaia em sangue, há quem perca pedaços de si em dias que de bom pouco têm. Depois sobra o vazio e o espaço onde já ouve um bocado de perna e um pé.

E sobra tempo no branco. Paredes brancas, batas brancas, ideias em branco.

E se...?

Cordas

sábado, 21 de junho de 2008

Ouvi dizer

Ouvi dizer que para lá do azul do céu, por cima das núvens, mesmo ao lado da fábrica de impossíveis há um velhote que passa os dias sentados a matar o tempo. Uns pózinhos mágicos e as horas passam ao ritmo do algodão doce que vai tomando forma em volta do pau. Algodão doce, como os sorrisos. Ainda me lembro do tempo em que os sorrisos eram de algodão, do tempo em que trazias doces na mão... Ainda me lembro.

Ouvi dizer que lá longe as paredes são de vidro, como muitos dos tectos cá em baixo, e nos dias em que a luz do sol brilha forte demais, os vidros transformam-se em espelhos, espelhos daqueles que não há cá em baixo, espelhos onde se reflectem as almas abertas por um abraço bem quente.

Ouvi dizer que, depois, nos dias em que chove muidinho se fazem grandes festas, festas quase tão grandes como aquelas dos dias em que chove bem forte, mas mesmo assim pequenas quando comparadas às outras, as que acontecem sempre que cai do céu mais uma estrela em mil pedacinhos de luz incandescente.

Ouvi dizer que as ruas vão todas dar a uma grande praça e que a praça fica de frente para o mar e que, lá longe, o mundo tem um girar diferente. Então o sol nasce no mesmo sitio onde se pôe. E todas as semanas há um dia em que o sol se limita a não aparecer, como aqui acontece com a lua. Diz-se por lá que às vezes é preciso sentir falta, para dar valor...

Gostava de lá ir um destes dias. Hoje as portas já fecharam. Ouvi também dizer que o mundo acaba amanhã...

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Já deu

Em tons de amarelo, toca já quase velha canção, "Yellow", "look how they shine for...".

E já há lua e estrelas e céu. Ainda há um par de dias caía a chuva e as folhas com ela. Só algumas que as outras lá ficaram penduradas qual guarda chuva gigante...

Na rotunda larga os carros continuam a passar como se nada fosse, passavam há uns anos também, enquanto lá longe em Srebrenica as valas iam ficando um pouco mais cheias de corpos sem gente dentro.

Acabou de nascer uma violeta plantada numa terrina...

Óbvio?

"A lei da gravidade para animais domésticos tem variações que exigem o devido estudo porque, se os bichos caem todos à mesma velocidade - o aceleramento é constante e independente do peso do animal -, já a altitude determina a forma como ele aterra.

Do quarto andar o pior que acontece ao gato é partir a pata da frente ou fender o palato e expirrar um pouco de sangue ao bater com o queixo no chão. Mas, por exemplo, se um bichano cair do primeiro andar ele poderá, incrivelmente, os veterinários confirmam-no, partir a espinha e morrer ou ficar paralítico, o desgraçado, por não ter tempo de se virar por inteiro, o que é estranho, ou por fazer mal as contas e dar meia volta a mais. No entanto, do segundo andar e do quarto andar não lhes acontece nada. O intrigante fenómeno de uma queda mais alta ser menos perigosa levou o Raúl da Casa Azul a postular a seguinte hipótese:

- E se a queda segura de um gato for uma constante de andares de número par?

...

O certo é que um dia o Cubano, farto dos gatos, alterou o seu campo de estudos para os cães. Deixou cair um cãozinho de patas para o ar, do quarto andar para o pátio, e o rafeiro não se virou e morreu.

- Conclusão, cão não é gato.

O animal fez um barulho seco e almofadado, parou de ganir. O medo do cãozinho encheu o ar, nos dois segundos e meio da queda."

Rui Cardoso Martins, "E se eu gostasse muito de morrer"

terça-feira, 17 de junho de 2008

Da cicatriz no braço direito

Os mosquitos picam o corpo em busca de sangue quente. Enquanto isso, a chuva lava almas e ouve palavras perdidas no meio do nada. E as horas passam, assim como os dias e os comboios e as vidas por nós.

"Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degradados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!

Morra o Dantas, morra! PIM!"


José de Almada Negreiros, Manifesto Anti-Dantas

segunda-feira, 16 de junho de 2008

d'O Campo

Maior. Do tamanho de um sorriso bem aberto a encher a cara. Maior, sem que se possa medir. Maior. Só assim. Simples? Talvez não seja simples. Talvez tenha sido. Talvez...

Grito agora contra as paredes, contra o vazio. Ecos distantes chegam como resposta. Palavras distorcidas pelo tempo. Tempo-espaço. "Nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma", e o pó é só o resto de tudo. Muda a forma, resta a matéria. E no vazio restará também qualquer coisa... Ecos, mais uma vez, ecos de palavras distantes.

Meio metro pode ser longe demais, meio metro entre um copo de água e um corpo de gesso. Meio metro, distância infinita... E depois a dúzia e meia de quilómetros que se transformam em nada. Querer. Porque no mundo é tudo relativo... E do lado de fora isso vê-se muito bem.

Tive em tempos medo do papão e do lobo mau, do sebastião que comia tudo e de ser tostado num forno de lenha. Mas o sebastião não era canibal, o lobo mau gostava mais de chatear ovelhas branquinhas, o papão sentia-se confortável debaixo da cama e no forno apenas cabiam meia dúzia de pães. Sentido? Sim. Fazia.
"quero ver-te amanhecer..."

domingo, 15 de junho de 2008

Tal fosse um copo grande embora sem o fundo

"A rua quebra-me a força negativa.
Sorrir,
Não é pêra doce!"

Ornatos Violeta, Letra S

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Sonho?

- Dona Aranha, como vai?
- Como sempre, sob as linhas que teço...
- Não era bem isso...
- Feliz, então, acho.
- É bom saber, Dona Aranha, é bom saber...
- Tenho feito umas coisas engraçadas ultimamente...
- Pois, já notei.
- Mas sabes, no fundo são só fiozinhos de seda. Limito-me a esticar fios de seda.
- São mais que fios, mais que cordas...
- :)
- "Dona Aranha nada disto faz sentido.".
- Claro que faz, embora nem sempre seja fácil encontrá-lo, percebê-lo, sei lá...
- Mas...
- ...um dia, um dia.

Facto

As delicias do mar comem gomas em forma de ursinhos. E são vermelhas porque preferem as de morango. Já agora, são capturadas no oceano pacífico...

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Frio

Tenho frio. E as pessoas não aquecem, não me aquecem. Nem o sol. Nem o mundo nem nada. E olho à volta e pouco vejo, quase não sinto. Não sinto o mesmo, não quero o mesmo. Vejo-me depois perdido sem saber...

Sinto falta dos sorrisos de algodão e dos raios laranja a fugir do olhar. Mas os dias mudaram, o tempo mudou e o mundo também.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

manel cruz

"Há quem veja em Jeremias apenas mais uma vítima da sociedade
Muito embora ele tenha a esse respeito uma opinião bem particular
É que enquanto um criminoso tem uma certa tendência natural para ser vitimado
Jeremias nunca encontrou razões para se culpar

Porque nunca foi a ambição, nem a vingança, que o levou a desprezar a lei
E jamais lhe passou pela cabeça tentar alterar a Constituição
Como um poeta ele desarranja o pesadelo para lá dos limites legais
Foragido por amor ao que é belo e por vocação"

Jorge Palma, Jeremias, o fora da lei

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Jardim


Há quem não ponha açúcar no café.
E está-se tão bem num outro qualquer lado que não o de dentro. Sei lá eu porquê. Porque sim...
Mais que o sol, tão mais, tão mais, tão mais...

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Com pequenas pintas nas asas...

se eu largar eu sinto a sua falta
se eu agarro ela perde a cor
ela não é dos meus dedos
é dos meus medos
e faço-me passar por uma flor
tento imaginar o que ela diz
à espera de aprender
à face da rua existe a lua
mas não é tua
à margem da estrada não há nada
mas já te agrada
tu és o teu mundo
tu és o teu fundo
tu és o teu poço
és o teu pior almoço
és a pulga na balança
és a mãe dessa criança
és o mal
és o bem
és o dia que não vem

agora pára de fazer sentido
não vês que assim estás a pisar fora da estrada
vê se agora paras de fazer sentido de uma vez
não vês que nada te dirá mais do que nos diz nada

vê que o meu coração ainda salta
quer e julga ser capaz
não o faça por meus medos
faça nos dedos
e eu fico para ver o que ele faz
sem imaginar o que eu não fiz
à espera de viver
à face da chama existe a fama
mas não te ama
à margem do nada não há estrada
já não te agrada
tu és o teu preço
és a tua glória
tu és o teu medo
és a parte má da história
vê que o sol ainda brilha
ainda tem por onde arder
não é mau
não é bom
são razões para viver

se eu largar eu vou sentir a tua falta

tu és tu sempre que tu és
és mesmo tu quando pensas que és outra coisa
e tu pensas que não
mas tu és mesmo bom a ser sempre quem és

daí o teu motivo ser inapagável
daí o teu desejo ser incontornável
o prazer é tão maleável
daí o seu valor ser inestimável

a razão de existir de um poeta é

Manel Cruz, Borboleta

Reflexo

E por um breve instante, tão breve quão breve pode ser a vida de um raio de sol, nesse instante em que a luz se mostra cruel, há mais certezas que dúvidas.

Enfim... Haverá quem se importe e diga, por exemplo, que as bananas estão verdes. E depois há quem goste, por exemplo, de bananas verdes.

E há quem goste de instantes sem sentido...

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Porque...

Porque as palavras são só o que são, bolinhas de sabão, talvez. Bolinhas de sabão que se sopram e esvoaçam um pouco acima dos olhos até rebentarem em mil e um pedaços de nada.

Bolinhas de sabão que enquanto duram são lindas de ver. Rumo ao céu... E depois há dias em que o sabão acaba e não ha bolinhas para contemplar, dias em que não vale a pena soprar a àgua, dias...

Enfim...

Palavras. Reparo agora que a palavra "palavras" até que nem é feia. "Terrina" também não soa mal. Uma palavra como prenda. Porque sim, só porque sim!

domingo, 1 de junho de 2008

"as palavras é só bolinhas de sabão"



Terrina


sexta-feira, 30 de maio de 2008

Fio

Como um fio de seda que balança ao sabor do vento e das gotas de chuva que quase o partem. Frágil e resistente ao mesmo tempo. Vai e vem, roda, gira e torçe. Não parte. Estica e encolhe, desenrola e volta a enrolar qual novelo colorido.

Fio ponte com gente nas pontas... Ou talvez não. Fio ponte com gente mais que gente nas pontas.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Cerejas

Muitas vezes ouvi a canção. Dizia a voz que a vida é feita de pequenos nadas. É! E depois esses nadas bem pequenos fazem um todo até com bastante graça.

E do meio do nada aparecem palavras que não deixam esquecer o que sempre se soube, a normalidade é sempre um bocado relativa e sabe bem acordar com as unhas pintadas de vermelho e revirar os olhos e ir só porque sim.

E as pessoas humanas pouco percebem dos pequenos nadas. Porque as pessoas humanas sabem muito pouco. Nem descobriram ainda que se pode ver o sol nascer...

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Bom dia

Perdi-me enquanto deambulava. Deixei-me andar sem ver para onde ia, deixei-me ir ora virando à esquerda, ora à direita. Cansei-me e adormeci. Acho que adormeci.

Acordei agora, mas não sei onde estou... De qualquer modo também não tenho a certeza de querer voltar...

terça-feira, 20 de maio de 2008

#20

Cai a última gota de sol e a canção que ecoa por detrás dos olhos é a mesma com que tinha acordado pela manhã. Ouço-a agora pela primeira vez com os ouvidos.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Impossível?

domingo, 18 de maio de 2008

#19

Tocaram os tambores mal se viu o primeiro raio de sol. Foi duro o acordar nesse dia em que a cidade se pintou de um branco que feria os olhos dos transeuntes quase perdidos.

sábado, 17 de maio de 2008

Campos

E depois é estranho demais sonhar com campos de girassois. Mais estranho é acordar e o silêncio dominar a vontade.

E é nessas alturas em que queria ter-te ao lado para te acordar com um bom dia e um beijo. É nessas alturas em que sinto coisas confusas que deixo de saber sentir.

E do resto que falem os entendidos...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Luas

Reparo agora ao olhar para o céu que quase cinco luas passaram. E cinco luas depois, encalhado no tempo, pergunto-me no que pensarei daqui a duas mais. Se calhar é de mim, ou então as marés passaram a encher e a vazar um pouco mais depressa.

Vi ontem um monte de ossos, carne e tendões. Vi ontem tudo isso feito pé. Um pé lego. Peça a peça, da maior à mais pequena, tudo junto e bem ligado.

E vi gente a tentar sair da fila, mas sem primeiro aprender a caminhar fora dela. Cairam e eu ri só porque sim.

Sei sim que o pé jamais será pé, mesmo com todas as peças bem montadas, sei que nem todos serão capazes de dar o salto e continuar ao alto e sei que daqui a duas luas, numa noite bem amarela, poderei voltar a contá-las do zero.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

.

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem a meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos

terça-feira, 13 de maio de 2008

Changes

Era simples demais quando quase chovia. Umas gotinhas de água aqui e ali, a refrescar o ser. Meia dúzia de nuvens acinzentadas a tapar o azul que logo depois haveria de voltar a brilhar.

Mas depois as nuvens deixaram de ser só cinzentas e passaram a ser negras. Em vez de quase chover, choveu mesmo. Tanto, tanto... Ficaram inundadas as casas e as ruas deixaram de se ver, assim como o azul azul que dantes feria os olhos. Mudou o tempo sem avisar. E eu que me recuso a andar de guarda chuva...

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Rodas

Pode não ser mau chorar, é até muito bom quando a lágrima corre pela linha do sorriso mais aberto que nunca. E depois perceber que o que tantas vezes se diz é tão verdade quanto o que se sente.

A distância como um fio de elástico que estica e encolhe à força da vontade e do querer. Porque descobri um dia que não há longe nem distância, que os metros são o que quisermos fazer deles e nada vale a pena se não se sentir um bocadinho.

O resto da história é simples. Porque a tangerina é bem pequena... E agora voltei a encontrar quem julgava ter perdido há uns pares de meses. Eu!

domingo, 20 de abril de 2008

Bancos

Simples demais para poder ser complicado. Talvez complicado demais para poder ser simples, sei lá. Como na canção...

E mesmo que só a fazer de conta, os bancos nunca estão vazios. Os do carro, os da alma, os da esquina e os que guardam o dinheiro.

domingo, 13 de abril de 2008

...

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro

Ecos

"Também eu..."

(Se calhar era mentira, se calhar é verdade. Já não conto ter tempo para descobrir. Nem sempre se pode saber tudo...)

#18

Ouvem-se as pancadinhas e cai o pano. Fica confuso o público. Nada estranham os actores. Dançam agora longe das centenas de olhares parados por detrás do pano negro. Dançam e caem, levantam-se e recomeçam.

Faz frio na rua, mas há estrelas que se deixam cair em pó. Pó quente...

Deixam as pancadas e o pano, mais os olhos e a confusão dos outros. Correm agora de braços abertos. Rumo ao nada que é tudo. Entretanto tropeçam num pequeno sol que, por acaso, se não tinha desfeito. Partem-no em mil pedaços. Olham as mãos queimadas... Foi o que deu tentarem colá-lo.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cebolas

No fundo, no fundo, seremos sempre só mais uns quantos ombros a tentar erguer cidades dos escombros...

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Voltas

Era uma vez uma aldeia. Essa aldeia, como todas as aldeias, tinha casas e ruas e estradas e jardins e praças e todas as coisas que as aldeias têm.

Tudo isto seria nada, se a aldeia não fosse uma aldeia especial. Para além de todas as casas serem côr-de-rosa -como todas as nossas estradas sao pretas-, havia apenas uma lei a cumprir. Todos os habitantes, sem excepção, teriam de sorrir. Ora aquilo era muito estranho para quem por lá passava de caminho para um qualquer outro lado.

Certo dia, durante um funeral, um forasteiro ao presenciar a cena, perguntou à viúva mais sorridente que tinha conhecido na vida a razão de tanta alegria. "Mas nós estamos tristes! Não percebo a pergunta...", respondeu Margarida, ostentando o mais belo sorriso que herdara dos seus pais. Na verdade, atrás dos sorrisos estendidos de orelha a orelha, escondiam-se dores e amarguras, desgostos e frustrações...

Herminio, o forasteiro, deixou-se ficar. Margarida, ao voltar para a sua casa côr-de-rosa encontrou-o sentado num qualquer banco de jardim. Não sorria. Então o sorriso?", perguntou, "Não conhece a lei? Aqui, todos temos de sorrir. Sempre, sempre, sempre...". Herminio soltou um "não me apetece". Margarida pegou-lhe na mão e levou-o para casa. Ai finalmente deu descanso às bochechas e suspirou "a mim também não...".

Perderam-se nas horas por entre palavras e chávenas de chá. Amanheceu e Herminio partiu para voltar poucos dias depois. Trazia na mão um saco e uma lata. Margarida sorriu, de verdade e por dentro, ao ver tal figura abrir o portão. Não havia tempo a perder. Pegaram na lata e pintaram a casa de preto perante o espanto geral da multidão sorridente que se ia juntando no meio da rua. "A partir de hoje", disse Margarida, "hei-de sorrir só quando me apetecer, a partir de hoje a minha casa será negra. Negra. Porque sim...".

Nem Margarida sabia o que tinha feito. Aos poucos, as casas foram mudando de côr na aldeia e os sorrisos desaparecendo das caras. Dois meses depois não restava uma única casa côr-de-rosa e os raros viajantes e por lá passavam estranhavam ver tanta sisudez nos rostos.

Herminio e Margarida, agora que se tinham encontrado, viviam felizes na casa negra ao fundo da rua. No canto em que havia somente terra plantaram um jardim onde se deitavam ao sol e riam horas sem fim.

Numa manhã de chuva, Herminio partiu novamente para de novo voltar poucos dias depois. Desta vez trazia só uma lata na mão. Ficou feliz, Margarida, quando o viu chegar, tão longa tinha sido a espera. Pintaram a casa de côr-de-rosa num dia de sol enquanto se riam de todos os outros que nunca souberam sorrir de verdade...

terça-feira, 8 de abril de 2008

Um pouco quase muito

Eu gosto quando chove. Gosto quando chove e molho os pés na água fria. E gosto quando o vento parte os chapéus de chuva das pessoas que andam com chapéus de chuva.

E passo na rua e olho de lado quem de lado me olha.

E sinto.

E gosto quando a chuva quase molha, em dias quase perfeitos. Quase... Faltou qualquer coisa na mão estendida.

Trapo

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Núvens

Viajavam em suaves nuvens de algodão doce. Durante as viagens, maiores que o próprio tempo, falavam de mundos e lugares e vidas e sonhos e tudo e nada. E riam com a única certeza de que nada mais existe senão, o agora que era só deles. Riam tanto por tão pouco.

Quando caia a noite e o azul do céu lentamente se ia transformando noutra côr, talvez mil e uma, pensavam em descer e logo desenhavam o minucioso plano de aterragem. O cálculo ao segundo, ao milimetro...

Depois, quando chegava a hora certa, e tudo apontava para que descesssem, deixavam-se ficar a ver as soturnas pessoas que lentamente se arrastavam um pouco mais abaixo deles. Tão pequenas lá em baixo.

Comiam bocadinhos pequenos de núvem mágica enquanto desciam só porque sim. Fora de horas e longe do lugar onde o tinham pensado fazer. Ao chegar ao chão olhavam um para o outro e diziam baixinho ao ouvido: "Havemos de voltar!". E voltavam, e voltaram até em dias quase sem núvens. Mas aquelas eram mais que nuvens, como eles eram mais que gente.

terça-feira, 1 de abril de 2008

#17

Chega a primavera, tempo de limpezas. É hora de arrastar a mobilia e pintar as paredes de fresco.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Tic-tac

Lentamente os Homens transformam-se em máquinas movidas à força cruel dos ponteiros do relógio. Transforma-se o mundo também.

Pergunto-me se há uns bons pares de anos alguém desconfiava que hoje até os tectos e as paredes das casas iriam ser falsos.

Dou-me por feliz por ainda conhecer gente...

domingo, 30 de março de 2008

Memória

Porque a única coisa que queria era uma palhinha. Não queria saber dos sumos que se agitavam por dentro da máquina estranha que parecia saida de um estúpido filme antigo, não tinha sede sequer. Queria uma palhinha. Queria uma palhinha para espreitar por ela e ver o mundo muito maior. Queria uma palhinha porque sim e quase não houve quem fosse capaz de o perceber.

Para que raio se quer uma palhinha se não para beber o sumo? Parece ridicúla a pergunta... Não sei quem seria hoje sem o sumo que o homem magro que continua igual uma dúzia de anos depois me deu. Uma dúzia de anos passados e lá continua ele junto à praia atrás do balcão de madeira. Já não há máquina nem palhinhas nem gente sentada a ver o mar. Há o homem e o puto, agora uma dúzia de anos mais velho.

E no fundo, nada mudou assim tanto. Desta vez para nada queria o café amargo, só a cadeira do canto onde um dia me deram um sumo e um palhinha.

Mar

Ao longe, por maior que seja a tempestade, sempre calmo. Existe sempre a linha do horizonte, mesmo que se confunda com o céu. É possível que por vezes sejam até um só, ou então não. Só um engano para os olhos.

No entanto, de perto tudo é diferente. A calma linha do horizonte ganha vida e já não há mais a vontade de pegar nela, enrolá-la num novelo e sem ninguém ver, guardá-la bem guardada no bolso.

De perto as ondas batem com força nas pedras. De perto as ondas são enormes e assustam. De perto as ondas são pequenos e inofensivos navios de espuma. De perto as ondas não existem.

Sentado na praia o velho pescador fixa os olhos lá longe no fim do céu tentado perceber o que verá de perto mais logo. Bem sabe que por mais olhe nunca saberá com o que contar, sabe ainda que mais logo irá cheirar a maresia...

#

"Visitou-me um velho amigo
Outrora solto em meu umbigo
Eu dei-lhe abrigo na prisão"

Ornatos Violeta, O.M.E.M.

terça-feira, 25 de março de 2008

O que não existe é assim

E depois há dias diferentes de todos os outros. Dias em que nem se é capaz de vez as caras que aparecem pela frente, quanto mais sentir os sorrisos que possam ter. Dias em que tudo é uma espécie de mancha verde vómito atravessada entre nós e o mundo.

Dias em que só o corpo existe, movimentos mais ou menos voluntários, só isso. Eis que então, como por magia, alguém estala os dedos e do meio de todos os sentidos perdidos na tão grande falta deles, acende-se mais uma vela, desponta mais uma ideia, fica-se a saber que lá longe as pessoas também são más e cobardes e que nada do que te conta meio mundo e pensa outro terço faz sentido.

Costuma chover no dia a seguir ao domingo de Páscoa por estes lados. Deve ter sido da falta de chuva. Há dias demasiado estranhos para terem existido. Se calhar é só um pedaço de sonho. Estas linhas nem existem fora da minha cabeça nem ninguém as poderá ler. Um sonho, isto tudo. E eu aqui. Faltou a luz lá do lado de fora. Deve ser por isso que o despertador ainda não tocou. Um sonho, isto tudo é um sonho e nada existe. Nenhuma destas letras, nenhuma destas palavras, nada disto do que penso dentro de um outro pensamento. Não existe. Não existe? Não vai ter fim...

segunda-feira, 24 de março de 2008

Gotas

Milhares, milhões, milhares de milhões de gotas de água e uma espécie de chuva que quase molha. Horas e horas, dias, meses e anos regados a água caida do céu.

Depressa se constroi a barragem que devagar encheu. Falta sempre qualquer coisa... Faltou espaço desta vez. Não transborda, rebenta. Pedras, cimento e peixes que por uns segundos sabem ser também pássaros sem asas nem penas.

Secam as nuvens e volta a brilhar o sol. Brilhará depois a lua de noite e a terra dará mais uma volta em torno de si mesma.

Talvez amanhã volte a chover. Talvez um dia os peixes voltem a voar.

terça-feira, 18 de março de 2008

Ironia

Perguntavam-me o porquê alguns, olhavam-me de lado outros. Nunca soube explicar bem. Ainda hoje não sei. Eram tantos os que falavam nos fantasmas guardados por esses sótãos fora. Tantas vezes olhava para eles e ria ao saber que passava tardes sentado sobre meia dúzia de esqueletos. Cada qual tinha uma história, sempre diferente, pois os dias raramente são iguais... Talvez fossem valentes guerreiros Romanos, ou então vulgares mendigos sem casa.

Talvez fosse tudo mentira e não houvesse mais que terra por debaixo daquele pedaço de chão pintado a vermelho. Pouco importa, agora que já não há pão quente às primeiras horas da manhã. Pouco importa, agora que não mais cheira a café fresco, se é que o café quente pode ser chamado de fresco, dentro das paredes cor de rosa.

Nunca soube responder aos porquês, mas sei hoje que fazia sentido. Fazia sentido andar uns bons metros fizesse chuva ou frio, fazia ainda mais sentido andá-los em dias de sol. E faziam tanto sentido as palavras que na altura nunca entendi.

- Secas ou frescas?
- Sei lá eu, mas têm sido sempre frescas. Secas desta vez...

Duas semanas passaram até cair a última noite em que as viste. E por acaso, mais uma vez por acaso, antes do último gole, disseste algo que não hei-de nunca esquecer. Passaram seis anos e as flores estão iguais. As que te deram depois apodreceram na terra fria. Pena que as tivessem dado só quando já não as podias ter. Chovia há seis anos...

Nau

Os dialectos alcoólicos a meio da noite, o velho conhecido aparecido do nada com a sua garrafa ambulante logo transformada em bar fixo. A oportunista encostada ao canto do balcão qual pássaro à espera de migalhas. Tantas quantas o bolo tinha.

Depressa o sol se mostra anunciando o fim do dia. Depressa o sol se mostra anunciando um novo dia. O fim seguido do começo. Ciclo vicioso, ciclo viciado. "Porque me apetece! e depois?". E depois não há distância nem horas nem nada.(Canta e ri a menina com o bolo nas mãos). Entre a chegada e a nova partida poucos minutos passam. Bastaram, não sendo muitos.

De volta. Encontro corpos espalhados pelos cantos da casa sem perceber bem porquê. Novo acordar, novo ir. É forte o vento desta vez, forte demais. Novamente dormem e vou. Vou e volto. E ao voltar penso que se calhar tudo não passou de um sonho. Talvez tenha estado também a dormir. Talvez. Talvez o sol não tenha nascido três vezes no mesmo dia. Talvez nunca tenha sentido os degraus debaixo dos pés. Apesar de tudo tenho a certeza que sorri.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Metamorfose

A linha invisivel de querer e sentir que separa o ser de todos os outros seres que existem à volta. Por vezes esquecidos naquele alheamento tão próprio de quem por momentos se esquece que mais mundo existe para além do pequeno ponto negro que lá ao fundo dá um pouco de cor à parede branca.

Muda o mundo entretanto. O olhar preso ao ponto, a alma presa ao olhar.

Das vulgares larvas surgem, surgiram, borboletas de mil e uma cores.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Ecos

"Se pedir peço cantando
Sou mais atendido assim
Porque se pedir chorando
Ninguém tem pena de mim"

António Aleixo

Falta sempre qualquer coisa...


Um destes dias, talvez num daqueles em que chove miudinho, hei-de inventar uma outra máquina. Por enquanto nada posso fazer quanto à materializadora de coisas vistas. Mas o impossível não existe, isso é certo e sabido, e nada me garante que, por um qualquer acaso, não haja mais que um monte de pixeis amarelados à tua frente.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

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"And I asked old Jack, "Do you remember the night
When the sky was so dark and the moon shone so bright?
When a million small children pretending to sleep
Nearly didn't have Christmas at all, so to speak?
And would, if you could, turn that mighty clock back,
To that long, fateful night. Now, think carefully, Jack.
Would you do the whole thing all over again,
Knowing what you know now, knowing what you knew then?"

And he smiled, like the old pumpkin king that I knew,
Then turned and asked softly of me, "Wouldn't you?""