sábado, 18 de outubro de 2008

Roda

"Cada um tem aquilo que merece
E bebo as palavras e quase que me engasgo
São belas perco-me nelas sem me fartar
Sem quase nunca me fartar
Podiamos ficar nisto o resto da noite
Em lugar nenhum"

Manel Cruz, Fora de Combate

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Números

Nada, nada, nada... Vai evitando a parede de vidro a todo o instante, sem se lembrar no instante a seguir de como há tão pouco o tinha feito. Come, se alguém deixa cair umas migalhas coloridas sobre a água. Come uma e outra vez, uma e outra... Sabe nada. Limita-se a existir num nadar infinito, sem memória do que foi ou noção do que é. Se ao menos pudesse pensar em sair... Se ao menos pensasse... Uma memória de poucos segundos não deve servir para grande coisa...

O peixinho vermelho a boiar no aquário, indiferente a tudo. A vida condensada num agora sem fim. Tic-tac, pequena máquina indiferente ao passar das horas.

- E se morrer?

- Compra-se outro, são todos iguais...

domingo, 12 de outubro de 2008

Talvez

"Devíamos todos usar suspensórios para que a alma nos caísse um pouco menos sobre os calcanhares..."

António Lobo Antunes, Os Cus de Judas

sábado, 11 de outubro de 2008

"Mas é sempre a mesma história..."

Como se fosse possível viver sem os papéis espalhados pelo chão e meio mundo perdido e espalhado pelo outro meio.

O primeiro assombro... E depois pouco resta dele. Farta-se o corpo e volta tudo ao que era dantes.

Sabe melhor assim, enquanto o corpo não se farta...

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

(som áspero e seco)

As peças do dominó todas alinhadas e ao alto à espera da primeira queda para que o desenho surja na mesa enorme.

Imóveis, tanto tempo, tanto.

Pim! Estalar de dedos, rajada de vento, empurrão mágico. Caiu a primeira.

Que surja o desenho...

sábado, 4 de outubro de 2008

"Sete"

As caras fecham-se para te dar a notícia. Escuta-la meio incrédulo, mas o tom de voz acaba por te convencer. Depois compras as flores e deixa-las ao lado do caixão. Olhas mais uma vez para ver se não te esqueceste de escrever o nome em letras bem grandes (as pessoas esquecidas são assim, às vezes até nem se lembram que outras ainda existem até ao dia em que sabem do funeral), comentas o tom de pele do morto e a roupa escolhida para a última viagem, desta vez na horizontal. Na horizontal, mas agora sem ressonar.

Ainda deve haver tempo para pensar um bocadinho e fazer as pazes, nem que só por uns meros segundos, com aquele que tanto invejas e não suportas, meros segundos e todos são amigos e justos e sensatos e morais.

Buraco aberto, terra para cima, não sem antes o senhor padre deixar as palavras mágicas no ar. Duas lágrimas no chão, óculos escuros nos olhos e se esperares pela noite talvez vejas uma alma esverdeada a subir aos céus. Mas não esperas, que no café a cerveja é fresca e a televisão lá está com o grande relvado acabado de regar. A cerveja é fresca e os copos muitos. Entretanto secaram os olhos e todos voltaram a ser os mesmos de sempre, inimigos, injustos, insensatos e imorais. O senhor padre troca as palavras mágicas por três "ais" na cama da sobrinha e dia um do mês que vem lá irão todos pôr as velas vermelhas a arder.

Sentir a horas marcadas deve ser uma coisa estranha.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

smilejacking

Por mais prisões e grades que mande construir, nunca o homem-máquina há-de ver-se livre dos ladrões de sorrisos.

Haverá sempre quem não olhe só para o chão e se atreva a segurar a porta pesada de um qualquer centro comercial. Mesmo que sem dentes na boca...

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

#26

E agora todos terão computadores, algo indispensável para os putos do quinto ano, está visto. Um magalhães em cada mochila e seremos outra vez os melhores do mundo. Os maiores do mundo. Se esperarmos mais uns dias talvez possamos ver os nossos vizinhos do lado a distribuir uns colombos. Depois, num gesto simbólico até se poderia fazer uma conferência lá para os lados de Tordesilhas, mas desta vez em formato lan-party-ministerial.

- Viste Zé? Matei o cabrão do espanhol.
- Porreiro pá!

A sexta lingua mais falada do planeta. Quem diria... Talvez não fosse má ideia ensiná-la bem... E se se oferececem uns livros? Daqueles em papel que se podem riscar e dobrar e trazer debaixo do braço, dos que ficam com as páginas amarelas e por vezes gastas...

Seria isso bom? Pessoas mais inteligentes e pensantes... Gente com voz e sonhos.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Gotas

Chove e há poças de água no chão. Molham-se os pés por entre dois saltos mal medidos. Depois há quem diga que a vida é linda enquanto as joaninhas vão voando para a fotografia como que por invejarem a borboleta fotogénica.

O Eládio Clímaco anima a viagem de comboio rumo ao pôr do sol na praia quase deserta e as coisas simples são tão mais.

Surge então a lua-bolacha-trincada enquanto a espuma branca e amarga depressa se troca por algodão doce cor-de-rosa. O preto ganha mil e uma cores e por mais que se pinte uma casa velha, nunca ela voltará a ser nova.

"É bom ser gente feliz" e o amanhã não existe. Os ovos estrelados são bons, mas nem sempre a frigideira ajuda. Mexidos também não são maus, desde que sem queijo.

sábado, 20 de setembro de 2008

Palavras...

"Estive há dez minutos atrás na varanda do meu quinto andar, a observar a cúpula invisível entre o céu e o enorme lego de betão e a sentir-me um inquilino passageiro desta pensão de uma estrela perdida na imensa cidade negra a que damos o nome de universo.

Curiosamente parece que é o único sítio que temos para passar a longa noite que nos espera.

E é aí que eu saio para apanhar a frequência. Como que a comer um ponto e a cagar um verso. No prisma, a encaixar, provavelmente no de outros feito um filósofo de merda.

Mas a vida é isso mesmo, um monte de gente a fazer de conta que se entende e ninguém sabe dizer o que viveu.

Por isso nos pedem que caminhemos alegres para o precipício sem questionar, porque estaremos sempre longe. Mas longe rapidamente fica perto e perto rapidamente passa por nós. Eu não quero mandar-te para baixo, mas sei que me entendes, tu também tens medo de morrer, toda a gente tem. Só que normalmente inventamos montes de problemas para nos convencermos que estamos ocupados a resolver uma situação importante quando não tem importância nenhuma.

Entretanto o tapete rola e nós irritamo-nos com a inevitabilidade, e nos nossos sonhos dizemos:

- Torna-me imortal! Torna-me imortal! Eu não vou aguentar deixar de existir!

E é aí que eu entro para sair da frequência, seduzir-te com os meus sonhos, tu não vês como empreendo? E como eu mais um milhão de sonhadores leva com ele muitos braços dos outros, acéfalos, na lotaria dos ideais, descrentes, beijando o número do bilhete.

Mas quero dizer-te que a viagem é tua, não quero empurrar-te à força para a rua.

Se eu falhar vou passar de deus a carrasco, embalsamado e metido dentro de um frasco, para te lembrares da mentira, mas a verdade é que ganhamos sempre."

Manel Cruz, Ainda pode descer