sábado, 24 de abril de 2010

de uma linha de comboio enterrada na areia

e depois os barcos dão à costa. na verdade são cartilagem ou osso ou apenas tecido um pouco mais duro. importa pouco. barcos. basta um pau e uma vela para dar a volta ao mundo.

peixolho. fica o registo.

dos peixes artistas

os peixes riem no rio lilás. riem de dia e fazem desenhos de luz pela noite. é fácil perceber os dorsos virados à lua embalados pelo vai-vem infinito só quebrado numa qualquer manhã de todos os marços. é fácil percebê-los felizes a imaginar quem ainda consegue  ver desenhos no rio feitos por peixes artistas. 

a verdade é que se vê bem o mundo lá do alto. e a cidade lençol feita pontos de luz também. mais os sorrisos.

domingo, 11 de abril de 2010

varanda





quinta-feira, 8 de abril de 2010

passos

era uma vez uma senhora chamada augusta que gostava de estátuas verdes. gostava também de ver o ir e vir das marés, do cheiro a sal e de gaivotas. fez.se rua e diz.se feliz.

era uma vez um senhor chamado alberto que certo dia enquanto se distraiu no chuveiro pôs no papel aquilo que já era uma verdade mais que absoluta. mas foi ele que concluiu que o tempo que corre das nove às onze é diferente do tempo que passa das seis às oito.

era uma vez uma senhora sem nome que achava pouco simpático o lugar onde lhe mataram a filha.

era uma vez um homem chamado joão que nunca seria capaz de imaginar que o click que lhe saiu do dedo ainda no século passado seria capaz de fazer sorrir mais de cinquenta anos depois.

era uma vez um cego que via um só fio de luz  pelo canto do olho  direito depois de lhe ter acontecido aquilo naquele dia e que agora se irritava quando o julgavam mais ou menos do que uma pessoa que não vê.

e era uma vez um barco e um cais e uma estação e (também, mesmo que noutro tempo) alecrim aos molhos.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

guinness

os papeis amarelados na parede anunciam alheiras e sorrio. vem-me à cabeça a nossa ânsia de recordes e surge.me a ideia de que o senhor adolfo possa ter sido apenas um invejoso ao bater palmas quando ouviu falar dos fornos gigantes.

tendo em conta as questões técnicas, não sei se não nos pertence o recorde de maior número de judeus mortos num fim de semana. foi numa páscoa destas, algures no rossio, vai para quinhentos e poucos anos.

mais um. haverá cidade no mundo com mais nomes de santos pelas ruas que esta? chegamos a santa apolónia, vê-se o branco do são vicente que se deve entreter a ouvir a amália, abre.se o passo, sobe-se um bocado e o são pedro poe.nos um sorriso nos lábios, mais meia dúzia de passos compridos e surge a catarina, santa também. outro ponto de vista para o mesmo rio lilás e são bento ali já ao lado. pasteis em santa maria de belém, o santo antónio à espera de um dia doze já não muito distante. o são josé deixou a carpintaria e dedicou.se às ligaduras, também há o sebastião que guarda os horriveis grandes armazéns de nuestros hermanos... até o castelo não é da cidade mas do são jorge.

e quantos mais debaixo dos pés? haverá cidade no mundo com mais pedras de calçada? da nossa, a portuguesa.obra.de.arte que calcamos sem dar conta, sem quase nunca dar conta. depois aparecem os visigodos do século vinte e um de máquina fotográfica em punho e há quem os julgue tolos por fixarem a objectiva no chão com o maior dos cuidados.

do resto, é verdade que os inteligentes afirmam que das coisas subjectivas não se pode fazer medida, mas ainda estou à espera que venha o primeiro que diga não gostar da luz. quando a vir, claro está.

domingo, 4 de abril de 2010

um

aranhas, calendários, camelos de asfalto, pedras, matemática, degraus.

as palavras surgem devagar e sem outras que as liguem. talvez a argamassa da páscoa não tenha sido bem feita, agora que parece começar de novo o tempo das alheiras, versão 2.0.

ocorrem sobretudo nomes de santos. a ironia é uma coisa enorme. o antónio, a catarina, o vicente, também o pedro, a lúzia e apolónia. aparece também o sol, escadas ainda não vistas descidas quatro a quatro, as portas do primeiro e cores talvez mil. 

isto um dia há.de ser junto de forma diferente.

domingo, 21 de março de 2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

quinze

há o seis e o sete. o cinco talvez. oito. quatro. trezentos e oitenta e dois. sete mil quinhentos e quarenta e um. números, algarismos juntos, pedaços de coisas e coisas aos pedaços.

mas quinze é mais ou menos o tamanho de dez mais cinco. medida formatada, volume aparente. 

dois algarismos. um número. falo de quilos e de vidas e do quanto as segundas cabem nos primeiros. coisas quase tão simples como a luz a desfazer.se no rio.mar. simples.

sábado, 6 de março de 2010

"farto do diz que disse
diz que viu
diz que aconteceu
diz que estava lá um amigo de um amigo
que é amigo teu
farto de ouvir
o mais bonito
o mais astuto
o mais sensível
mas o incrível
é que ao espelho eu só vejo o mais bruto
farto das mesmas queixas no mesmo caderno
farto da caneta que me leva ao inferno
farto de mim de ti de nós contra o resto do mundo
a selecção deles é mais forte
ficaremos sempre em segundo
ninguém te disse
ninguém te contou
ninguém te falou
não dá para ganhar

eles dizem
foge foge
mas eu fico
foge foge
e eu fico
cada vez mais bandido"

Manel Cruz, O canto dos homens-conto

terça-feira, 2 de março de 2010

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!...

Álvaro de Campos