terça-feira, 18 de março de 2008

Ironia

Perguntavam-me o porquê alguns, olhavam-me de lado outros. Nunca soube explicar bem. Ainda hoje não sei. Eram tantos os que falavam nos fantasmas guardados por esses sótãos fora. Tantas vezes olhava para eles e ria ao saber que passava tardes sentado sobre meia dúzia de esqueletos. Cada qual tinha uma história, sempre diferente, pois os dias raramente são iguais... Talvez fossem valentes guerreiros Romanos, ou então vulgares mendigos sem casa.

Talvez fosse tudo mentira e não houvesse mais que terra por debaixo daquele pedaço de chão pintado a vermelho. Pouco importa, agora que já não há pão quente às primeiras horas da manhã. Pouco importa, agora que não mais cheira a café fresco, se é que o café quente pode ser chamado de fresco, dentro das paredes cor de rosa.

Nunca soube responder aos porquês, mas sei hoje que fazia sentido. Fazia sentido andar uns bons metros fizesse chuva ou frio, fazia ainda mais sentido andá-los em dias de sol. E faziam tanto sentido as palavras que na altura nunca entendi.

- Secas ou frescas?
- Sei lá eu, mas têm sido sempre frescas. Secas desta vez...

Duas semanas passaram até cair a última noite em que as viste. E por acaso, mais uma vez por acaso, antes do último gole, disseste algo que não hei-de nunca esquecer. Passaram seis anos e as flores estão iguais. As que te deram depois apodreceram na terra fria. Pena que as tivessem dado só quando já não as podias ter. Chovia há seis anos...

Nau

Os dialectos alcoólicos a meio da noite, o velho conhecido aparecido do nada com a sua garrafa ambulante logo transformada em bar fixo. A oportunista encostada ao canto do balcão qual pássaro à espera de migalhas. Tantas quantas o bolo tinha.

Depressa o sol se mostra anunciando o fim do dia. Depressa o sol se mostra anunciando um novo dia. O fim seguido do começo. Ciclo vicioso, ciclo viciado. "Porque me apetece! e depois?". E depois não há distância nem horas nem nada.(Canta e ri a menina com o bolo nas mãos). Entre a chegada e a nova partida poucos minutos passam. Bastaram, não sendo muitos.

De volta. Encontro corpos espalhados pelos cantos da casa sem perceber bem porquê. Novo acordar, novo ir. É forte o vento desta vez, forte demais. Novamente dormem e vou. Vou e volto. E ao voltar penso que se calhar tudo não passou de um sonho. Talvez tenha estado também a dormir. Talvez. Talvez o sol não tenha nascido três vezes no mesmo dia. Talvez nunca tenha sentido os degraus debaixo dos pés. Apesar de tudo tenho a certeza que sorri.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Metamorfose

A linha invisivel de querer e sentir que separa o ser de todos os outros seres que existem à volta. Por vezes esquecidos naquele alheamento tão próprio de quem por momentos se esquece que mais mundo existe para além do pequeno ponto negro que lá ao fundo dá um pouco de cor à parede branca.

Muda o mundo entretanto. O olhar preso ao ponto, a alma presa ao olhar.

Das vulgares larvas surgem, surgiram, borboletas de mil e uma cores.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Ecos

"Se pedir peço cantando
Sou mais atendido assim
Porque se pedir chorando
Ninguém tem pena de mim"

António Aleixo

Falta sempre qualquer coisa...


Um destes dias, talvez num daqueles em que chove miudinho, hei-de inventar uma outra máquina. Por enquanto nada posso fazer quanto à materializadora de coisas vistas. Mas o impossível não existe, isso é certo e sabido, e nada me garante que, por um qualquer acaso, não haja mais que um monte de pixeis amarelados à tua frente.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

#

"And I asked old Jack, "Do you remember the night
When the sky was so dark and the moon shone so bright?
When a million small children pretending to sleep
Nearly didn't have Christmas at all, so to speak?
And would, if you could, turn that mighty clock back,
To that long, fateful night. Now, think carefully, Jack.
Would you do the whole thing all over again,
Knowing what you know now, knowing what you knew then?"

And he smiled, like the old pumpkin king that I knew,
Then turned and asked softly of me, "Wouldn't you?""

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Passo

Estúpido engano este de pensar que os pés não são só nossos. Lembro-me de em tempos me criticarem o passo. Ora largo, ora breve, mas nunca o passo certo. O meu passo, sempre o meu passo.

Lembro também os dias em que as verdades absolutas eram nada mais que mentiras aos olhos dos outros, lembro tudo isso com o sorriso que se pode ter na cara tantos anos depois... Assim como recordo alguns dias, poucos, em que me apareciam certezas pela frente. Ir, ir, ir...

Falava contra o eco cruel das paredes pintadas de fresco. Ganhava forma o magro deus egipcio. O bem, o mal e a balança! Houve depois um dia em que tudo foi falso. Houve tempos para lá do dia em que tudo foi falso em que existir doía, doía demais. E doía querer e não ter, doía não poder ir. Mas a dor aguenta-se e faz-nos sentir. Transformei o não ter em não querer e o não poder ir em falta de vontade. No fundo, lá bem no fundo, continuavam a latejar os sonhos. Ir, ir, ir...

Tantas vezes a maré subiu e desceu, tantas vezes a vi depois de umas horas passadas entre carris e apostas. Tantos dias o sol se pôs. O passo. Mais uma vez o passo. Tentaram então acompanhá-lo. E acreditei que afinal fosse possível, acreditei que não poderia haver uma só medida criada propositadamente para mim. Acreditei até ao dia em que vi as cordas que prendiam as pernas. Era falso o andamento. O passo era só meu. De nada valia a vontade de o acompanhar por parte de outro alguém.

Segui sozinho o caminho, o meu caminho, por vezes sozinho demais, encontrei então à beira da estrada um pequeno monstro. Demos as mãos. Ouvi vezes sem conta as palavras que me mostrou. Ainda hoje as trago comigo.

Tempo, tempo, tempo... Passaram os dias e as gentes por mim, poucos guardei, poucos quis guardar. Eu e o monstro. À medida que os dias passavam perguntava a mim mesmo o quão justa seria a balança do tal senhor. Um deus por inteiro. Não era um semideus como se acham tantas das criaturas por este mundo fora, logo deveria ter alguma justiça em si. Morte, morte, morte, morte... Ir, ir, ir... O meu passo, eu e o monstro.

Subiram e desceram novamente mil e uma marés. Girou o mundo, cairam do frágil trapézio mihões de almas e mais uma vez pensei ser possível. Quatro pernas a caminhar lado a lado. Esquerda, direita, esquerda, direita, cadência quase perfeita. Quase. Isso. Quase, nada mais.

Sei agora mais que nunca que o passo é só meu e que a paz está no fim da linha, no fim do doce embalo da velha carruagem sem rumo. Ir, ir, ir...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Para lá do nevoeiro

A imagem de um velho de barbas conversando alegremente com uma menina simpatica. Juntaram-se por estes dias a uma qualquer esquina por mero acaso. Perderam-se nas palavras, inventaram jogos novos e riram, riram até não haver dias nem noites nem nuvens nem chão nem nada mais que não eles.

Sem tempo (coisa que não existe nas esquinas daquela terra) esqueceram-se do poder que têm, nem mais se lembraram que deles dependem algumas almas e muitos gestos. Então o riso não parou. Nem as brincadeiras por entre os olhares de uns quantos mais personagens daquele mundo estranho. Até Baco, por norma ausente da razão, se sentou por momentos a tentar perceber o porquê de tanta euforia.

Enquanto isso, longe, bem longe, tão longe que quase perto, vagueiam noutro mundo, noutra terra, outros seres. Incrédulos. As palavras, cruzadas, quase iguais, encontradas à mesma hora. O rio com dois sentidos, a mesma água. Toca o relógio, voam as letras. E por breves instantes, os risos e sorrisos não pertencem só ao velho de barbas e à menina simpática, mas também a quem nunca deixou de acreditar que eles existem algures...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

#16

E por meia duzia de papeis coloridos tudo se faz. Volta o corpo, fica o resto. Papoilas e memórias do pó e da falta. Falta de tudo, faltava tudo. E agora que tudo há, falta pouco.

Depois, já tudo se questiona. Para que serve um carro sem motor?

#15

Quando encontrar as palavras hei-de deixar aqui mais algumas...












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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Iguais

Um mundo à parte, um reino diferente. Todos iguais. Milhares de personagens frágeis em busca de um qualquer elixir mágico que lhes devolva um pouco de algo que nem sabiam ter. Centenas de batas brancas e um cheiro que se entranha no ser.

Formigueiro imenso. Trocam-se os papéis e quase rio ao pressentir a impotência de muitos que durante toda uma vida deram talvez importância demais a meia dúzia de números. Vergam-se agora ao peso das carteiras que trazem debaixo do braço.

Olham para o lado e vêm-se sós, num mundo que fingiam não conhecer. Chegados à fila da morte, tentam voltar atrás. Tarde demais. Ali são todos iguais e já não há excepcções à venda...

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Quase

Tenho saudades dos dias em que quase chovia, em que quase aparecia o arco-iris, em que o quase era toda uma vida.

Saudades de não ter de marcar hora para a consulta, saudades das visitas de médico quando o tempo se fazia curto e mole.

Saudades das palavras que quase se diziam e dos saltos que quase se davam.

Saudades de acordar quase feliz.

Barco

Pouco acima do rio, há um barco que navega todos os dias ao sabor do vento. Pergunto-me quantos dos que passam por ele todos os dias já o viram.

Indiferente, a quem vê, a quem sabe, a quem olha, a quem sente, naufraga em torno do seu eixo ferrugento.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Rumo

Gostava por vezes de escolher o caminho. Pensar e ponderar e isso tudo. Fazer o mapa e tomar as decisões de amanhã e depois. E prever as viragens, congelar as palavras, pré-fabricar os gestos.

Lembo-me muita vez dos comboios e das linhas, tão certas, tão certas, tão certas... As agulhas lá no sitio. Esquerda, direita, linha um, linha dois, linha infinito mais mil. Tudo estudado e mais que previsto, ao minuto, ao segundo...

Mas não. Habituei-me a andar a pé e a desviar-me das pessoas mais mal cheirosas que encontro nos passeios. Na hora. E tantas vezes me engano no caminho, tantas vezes perco o fim, tantas vezes vagueio sem rumo.

E é por isso, só por isso e por algo mais que não sei explicar, só sentir. E há dias em que existir dói. Há dias em que ser cansa. Sobram outros em que se percebe que a dor nos lembra estarmos vivos e o cansaço nos ensina a aproveitar a paz saida de um mar laranja e feliz.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Tempos

são velhas as canções cantadas em dias de chuva no passar das horas que voltaram a perder o passo. são estranhos os refrões das canções velhas.

e no desenrolar vagaroso dos sons abre-se uma janela algures, para que o homem de dedos já queimados pelo tempo fume mais um cigarro ao ver os putos levados pela mão para longe. para bem longe do sonho cantado agora numa das velhas canções. é verde a janela. e de madeira.

amanhece mais uma vez...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Falhas

Mal deixaste o bibe sujo, vestiste o fato novo. Tanta foi a pressa que te esqueceste de experimentar as calças largas. Não mais te sujaste, não voltaste a rebolar no chão que os fatos são caros e a vida não está lá muito boa para gastos...

Não quiseste mais saber do que foste nem dos que foram contigo. Agora, na secretária de vidro com vista para os barcos que ao longe vão largando pequenas nuvens de fumo negro, agora que os dias não acabam mais ao pôr do sol, agora que já não te escondes no arbusto nem te atiras ao poço de lama, agora que já não corres, pensas só nas horas e nos dias, nos anos e nos meses, acumulas certezas e planos sem mais te lembrares dos momentos em que foste a pessoa mais feliz do mundo só por ter um prato acastanhado e sujo nas mãos.

Porta. Elevador. Carro. Casa. Sofá. Noticias...
"... houve um enorme derrame de crude algures no mar..."
- Onde? Sabes?
- Foi mesmo perto de ti. Não viste?
- Não reparei...

Há quanto tempo deixaste de olhar o mar à tua frente?

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Poeira

Penso por vezes no mar de acasos que surgem dia após dia. Cada palavra, cada passo, cada sonho...

Pergunto onde fica o sentido. Que sentido fazem hoje as palavras de há tantos anos atrás? A fruta apodrece, as verdades mudam. Para que foi aquele grito? A viagem, o verde a ferir os olhos mal a noite tinha caido, a certeza de ser possível. O puto cresceu, a estrada mudou, o velho quase já não fala, a casa caiu. Pouco resta da tarde quase noite em que as pessoas se tornaram tão pequenas quanto os 200 metros de longe quiseram...

E a lágrima que não caiu? O gesto preso...

Somos feitos de quê afinal?

"Sabes, não me importei nada. Não conhecia ninguém... Até posso perceber que as pessoas de lá estejam tristes e sintam dor e tal, mas eu não estou!"

Hoje

Um vazio imenso. Só um monte de osso e carne que caminha sem rumo...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

#14

Vale a pena, vale sempre. Nem que seja só para ver o arco irís fora do céu.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

10 Anos

Parou nas paredes, nas mesas, no velho calendário pendurado no tecto, nas conversas... Depressa demais lhe marcou rugas na cara.

As duas velocidades do tempo, para lá da porta castanha.

Ratos

O barco descola lentamente. Rumo às nuvens. Larga o mar, mar chão, e vai. O velho marinheiro ajeita as barbas enquanto no convés os ratos escorregam e caem à água. Milhões de viagens fizeram, mas nenhuma como esta. Anos e anos a navegar. Algum dia teria de marcar a diferença.

Para trás fica a cidade fantasma, um monte de casas sem vida, sem som, sem gente. Vazia, oca, suja. No jardim, julgando-se louco, o novo mendigo aprecia o espectáculo por entre dois goles de um qualquer liquido esverdeado -o lixo de uns, a posse de outros- encontrado há um par de horas mesmo à beira do banco feito casa.

Corre agora, corre sem destino, acaba de o fazer. Estrada, escadas, ponte. Voa ao lado dos ratos. Plana de braços bem abertos, bate as asas devagar. Já não respira. Morreu a sonhar.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Leve

Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.

Alberto Caeiro

Home

Tive em tempos uma casa na árvore.
 
Não tinha tábuas
Nem escadas
Nem portas
Nem janelas
Nem nada. 
 
Mas ainda assim era uma casa. 

Ou se calhar era só um ramo grosso.
 
Todos tivemos em tempos uma casa na árvore
mesmo que nem sequer a árvore existisse…

Um dia
ao passar na estrada, reparei que a casa tinha sido demolida. 
 
Ainda hoje
há quem diga que só se cortaram uns ramos velhos e grossos.

Paredes

"As paredes têm ouvidos", ouço dizer há muito tempo. Descobri hoje que também têm boca. E falam.

(Podiam ao menos perguntar se queria ouvir. Não queria.)

Ups!

Primeiro levaram os comunistas,
mas eu não me importei,
porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,
mas a mim isso não me afectou,
porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,
mas eu não me incomodei,
porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir,
chegou a vez dos padres,
mas como eu não sou religioso, também não liguei.

Agora levaram-me a mim e,
quando percebi,
já era tarde.

Bertolt Brecht

domingo, 13 de janeiro de 2008

Os porcos também voam

Sentado na relva escurecida pela luz da noite, indiferente aos carros que passam, ainda meio atordoado pelo último zumbido do estupido verme que se apoderou da sua mente, olha o céu e tenta imaginar respostas para as perguntas que não tem.

Limita-se a ver porcos a voar num céu limpo que não a noite estrelada acima de si. Os porcos voam sempre que o homem quer... Na esquina branca onde se juntam as paredes sem cor, onde à vez se encostam corpos sem alma, a velha aranha tece mais um fio de seda. Parede, parede, corpo, parede. Anos e anos na tentativa de fazer a teia perfeita. Anos e anos, milhares de corpos, milhões de fios perdidos, partidos por quem nunca sequer os tentou ver.

Descem os porcos à terra, trazidos pela mesma imaginação que os fez subir. Os porcos não voam. Continua a aranha à procura da perfeição inatingivel. Descansa mais um corpo na esquina das almas perdidas. Acaba o cigarro. Adormece o louco na relva feita verde pelos primeiros raios de sol.

Perdido?

Quantos são os que não sabem dos óculos estando eles mesmo por cima da testa? Estão perdidos os óculos? Ou só escondidos por breves momentos?

Pergunto-me por vezes se as pessoas, por mais distraidas que sejam, podem perder o sorriso estando ele entre a testa e o queixo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

#13

Cai depois a chuva em grãos transparentes que já não molham...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

#12

Um sem número de virgulas do lado de trás dos olhos. Virgulas e pontos e palavras novas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Ciclo

2007 I

-Tenho um problema!
-Eu tenho muitos...

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Trono

Chega bem cedo e senta-se no seu trono de cristal. Eleva-se no céu e plana até cansar os olhos. Trono mágico que o faz invisivel. Percorre todas as ruas da cidade, observa cada beco como se fosse a primeira vez. Dia ou noite pouco importa. Invisivel como se os seus olhos fossem os olhos de outro alguém ali mesmo à sua frente. Não há som nem cheiro nem frio nem calor. Só imagens.

Paira agora quase ao nível do chão. À frente o homem das chagas, ao lado o cego sem olhos. Sobe e sonha com o dia de amanhã esquecendo que o hoje ainda não acabou. Dorme agora embalado pela neblina cinzenta. Acorda sem saber bem onde. É tarde. Desce da cadeira mágica e sente o cheiro familiar de tempos que já passaram. Ao fundo uma gaivota grita em desespero. Está frio, sente-o nos ossos. Procura, procura-se mas nada encontra. Pensa e lembra. Lembra-se de um passado não muito distante quando nem sequer ainda tinha descoberto o seu trono abandonado à beira da estrada. Jura não mais voltar a subir. Deixa o trono e segue a pé. Há-de chegar ao seu destino ainda hoje. Lembra-se. "Cheira a maresia!".

sábado, 5 de janeiro de 2008

Panos. Linhas. Sorriso.

E no fundo, tudo o que queria agora era poder pegar nos retalhos de pano mal cosidos e nas folhas secas que os enchem. Pegar nos retalhos de pano mal cosidos e nas folhas secas que os enchem e pôr tudo na palma da mão. Os retalhos de pano mal cosidos e as folhas secas que os enchem têm forma, claro está.

Depois, como por magia, soprava bem devagarinho e todas as linhas que estão fora de sitio voltariam ao seu lugar, os pedaços de pano soltos seriam bem cosidos e aquela linha mais especial em forma de meia lua seria reforçada para não mais voltar a ser de outra maneira.

Às vezes querer não basta, mas acreditar pode ser que ajude. E os panos estão tão descosidos...

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Oco

Como se a vida fosse um jogo que aprendemos a jogar com diferentes regras, como se fosse possível haver razão no ponto em que a razão nos separa. Recordo-me de palavras bolorentas de tão antigas que são, lembro-me de ter ouvido nas entrelinhas o que não foi dito. Lembro-me de tudo isso.

Metade, dois terços, três quartos. A confiança e as pessoas medidas em fracções. O horror dos números a marcar o passo dos dias. Resta o castelo, grande, com escadas em caracol e paredes para abrir janelas, há martelos lá dentro e nos dias em que o sol se esconde logo pela manhã cheira a canela na cozinha velha sem fogão.

Em tempos orgulhei-me de saber sonhar, espero agora esquecer-me de como se faz, afinal são as razões que fazem o mundo girar.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Contradições

É se calhar fácil matar, pela madrugada será melhor segundo dizem alguns. Não sei se acredite. Talvez pela noite não seja tão mau assim, os gritos a rasgar o silêncio... Gritos? Há quem morra sem gritar, até quem morra sem dar por nada, sem ter dado por nada, pelo nada da (sua) vida e das vidas que lhe giravam à volta. Devem haver os outros que dão por tudo até à ultima gota de sangue que cai na lama. O mundo a girar e as mãos quentes, metálicas demais do cheiro rubro.

O corpo frio no chão quente, a lâmpada partida a enfeitar o céu, mais um menos um, mais carne menos carne, mais homem menos homem, mais ser menos ser. Na grande mesa comprida (se calhar redonda) não faltarão razões para celebrar outro dia que passou.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Natal

Dia de Natal e de lua cheia. Imagem curiosa ao fundo da rua. Haverá algures uma espécie de precipicio, haverá lá espaço também, faltará sempre um par de braços.

#11

Memórias e sonhos misturados com sorrisos de algodão e palavras mágicas. Tanto tempo, (meu Deus), tanto, tão pouco. Olho para as palavras cheias de pó e não lhes vejo já sentido, leio as entrelinhas mas não as entendo agora. Passam os dias, os meses, os anos, até mesmo as horas e o resto das medidas crueis e ingratas, crescem os metros, desaparecem os espaços.

Deviam ter-me dito que a vida também cobra juros.

Até as estações fecham quando se querem abertas.

Linhas e fios, trapos e cestos, garrafas partidas e mãos soltas por aí. Canções e contos, corridas e desesperos. Mais um dia, mais um ano, mais um minuto.
?

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Dias

Nos dias em que as caras se abrem ao mundo em forma de vozes que saltam das gargantas outrora apertadas demais para poderem deixar escapar palavras, nesses dias em que as horas correm sem pressa ou sem vagar dependendo do que os olhos conseguem avistar e o coração sentir, nos chamados dias úteis, aqueles que fazem bem ao monte de átomos que somos, há pontes e jardins e praças e cores e pinceis e telas e desenhos e palavras pintadas nas ruas e ideias que voam e rodopiam tal qual a folha castanha embalada pelo vento.

Nas portas abertas onde homens de batas manchadas sorriem e olham e sentem, nessas portas que só se abrem a quem lá entra, há calor mesmo no mais frio dia do ano.

Gotas

Chegou o frio que congela as almas se é que elas existem, se não forem as almas que congelam será certamente algo que faz sentir. Entra por todo o lado e amolece o ser, aprisiona os gestos, confunde o querer...

Hoje o frio foi embora, está um belo dia de chuva!

E tu, já tiveste um coração nas mãos?

"uma vez apareceu-me um puto. tinha tido um acidente e naquela coisa de ver o que dá abriu-se o peito e olha. peguei nele e ainda vi se começava a bater, mas não valia a pena. quando o corpo não quer não dá. mas foi uma sensação estranha, ter ali o coração nas mãos, literalmente, estranho mas bom ao mesmo tempo. enfim, não se safou, quando o corpo não quer não se pode fazer nada"

D.Sebastião, Rei de Portugal

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Fernando Pessoa

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Entrelinhas

É sempre fácil no meio do silêncio ouvir até uma gota de água a cair na terra, é fácil ouvir o grito do outro lado da rua. É fácil ver a luz, por mais ténue que seja, na mais prufunda escuridão.

Dificil é perceber as palavras no meio do barulho e ver a fraca luz de uma lanterna no mais claro dia de sol.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Passos

Tento perceber as caras e os gostos, os olhares e algumas palavras, mas já tudo me é estranho. As maneiras de ser, de estar e de querer de quase todos, os gestos e os sentires...

Aprecio e admiro os dois ou três resistentes que teimam em querer fazer algo de bom, seja lá isso o que for. Vejo ainda nos olhares de poucos o brilho de quem se acha capaz de construir um mundo melhor ao ritmo de pequenos gestos.

O mais são só comboios a passar, e corpos à espera de partir num deles. E lá ao fundo -sempre algo diferente ao fundo- há quem se vá entretendo a pintar a grande parede de tijolos velhos com um azul cor de céu.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Cores

Varia o tom, só isso. Ora amarelo, ora azul, vermelho até por vezes. O drama é sempre o mesmo, o drama ou a falta dele, nos ovos que teimam em perder a forma, no azul que por vezes teima em fugir. Na pasta encarnada que pode não ser bem o que se está à espera que seja.

Saborear, só isso e nada mais, dia após dia até ao dia em que todo o gosto, todos os gostos sejam perdidos. Dia longe, espero eu.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

?

E lá longe, na terra em que a água corre de baixo para cima e os dias não acabam nem começam, nessa terra onde, se calhar, dançam pequenas criaturas verde-alface ou então enormes seres amarelos com pés de barro vermelho. No lugar que fica entre aquelas duas estrelas bem pequenas, mas nem por isso pouco brilhantes, lá, lá longe, haverá música?

Avesso

Como se no mais simples dos dias tudo houvesse à volta. O mar ali ao lado em forma de rio sujo, o horizonte em forma de casas que crescem rumo ao céu. Os sorrisos nas caras mais fechadas que nunca, os risos também nas discussões fúteis travadas nas esquinas. O querer no não querer de quase todos o sentir que sim no não dos seres à volta. O ver, o ver de olhos fechados, mais que ver para dentro, ver para fora. De olhos fechados.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

618236981457789 peças

Se calhar está mesmo escrito nas estrelas ou na palma da mão. Pode estar até rabiscado nesses graffities que se vêm nos comboios, Quem sabe se anda a a boiar numa garrafa fechada atirada ao mar num dia de sol. Andará a boiar numa garrafa fechada atirada ao mar num dia de chuva?

Vejo as frases espalhadas por ai como peças de um puzzle enorme, peças soltas, já vistas, todas, fora de ordem, algumas. Partes construidas, muitas por juntar ainda, vê-se um pouco de relva no chão, azul no céu, algumas nuvens e o que para já parece ser uma estrada. Há bocados de casas também, ou então são só casas aos bocados.

Num canto já acabado está uma lata velha, numa parte grande que parece ser o meio há uma mão pequena que segura um pedaço de corda. Olho outra vez para o grande monte e reparo que há uma peça branca, ou então em branco. Logo verei onde a encaixar, um destes dias em que o tempo queira voltar a correr sem ritmo, ora depressa, ora devagar e não nesta cadência certa de relógio afinado em que as horas teimam em durar da mesma maneira.

domingo, 25 de novembro de 2007

Histórias

E lá longe, quase no fim do mundo os carros despistam-se do nada. E do lado de cá ouvimos o que nos dizem e lemos o que nos escrevem, depois, há quem sinta o que os senhores pretendentes a deuses querem que se sinta.

Há quem não sinta assim, há até quem desconfie que como se acrescentam pontos à medida que os contos se vão espalhando por ai, também as linhas se podem tirar às histórias. Às histórias sim, à história não, porque essa fica lá parada algures no tempo até que haja quem a queira contar sem pontos a mais ou linhas a menos.

E um dia, talvez todos venham a saber que lá longe, quase no fim do mundo, os carros raramente se despistam do nada.