quarta-feira, 4 de junho de 2008

Com pequenas pintas nas asas...

se eu largar eu sinto a sua falta
se eu agarro ela perde a cor
ela não é dos meus dedos
é dos meus medos
e faço-me passar por uma flor
tento imaginar o que ela diz
à espera de aprender
à face da rua existe a lua
mas não é tua
à margem da estrada não há nada
mas já te agrada
tu és o teu mundo
tu és o teu fundo
tu és o teu poço
és o teu pior almoço
és a pulga na balança
és a mãe dessa criança
és o mal
és o bem
és o dia que não vem

agora pára de fazer sentido
não vês que assim estás a pisar fora da estrada
vê se agora paras de fazer sentido de uma vez
não vês que nada te dirá mais do que nos diz nada

vê que o meu coração ainda salta
quer e julga ser capaz
não o faça por meus medos
faça nos dedos
e eu fico para ver o que ele faz
sem imaginar o que eu não fiz
à espera de viver
à face da chama existe a fama
mas não te ama
à margem do nada não há estrada
já não te agrada
tu és o teu preço
és a tua glória
tu és o teu medo
és a parte má da história
vê que o sol ainda brilha
ainda tem por onde arder
não é mau
não é bom
são razões para viver

se eu largar eu vou sentir a tua falta

tu és tu sempre que tu és
és mesmo tu quando pensas que és outra coisa
e tu pensas que não
mas tu és mesmo bom a ser sempre quem és

daí o teu motivo ser inapagável
daí o teu desejo ser incontornável
o prazer é tão maleável
daí o seu valor ser inestimável

a razão de existir de um poeta é

Manel Cruz, Borboleta

Reflexo

E por um breve instante, tão breve quão breve pode ser a vida de um raio de sol, nesse instante em que a luz se mostra cruel, há mais certezas que dúvidas.

Enfim... Haverá quem se importe e diga, por exemplo, que as bananas estão verdes. E depois há quem goste, por exemplo, de bananas verdes.

E há quem goste de instantes sem sentido...

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Porque...

Porque as palavras são só o que são, bolinhas de sabão, talvez. Bolinhas de sabão que se sopram e esvoaçam um pouco acima dos olhos até rebentarem em mil e um pedaços de nada.

Bolinhas de sabão que enquanto duram são lindas de ver. Rumo ao céu... E depois há dias em que o sabão acaba e não ha bolinhas para contemplar, dias em que não vale a pena soprar a àgua, dias...

Enfim...

Palavras. Reparo agora que a palavra "palavras" até que nem é feia. "Terrina" também não soa mal. Uma palavra como prenda. Porque sim, só porque sim!

domingo, 1 de junho de 2008

"as palavras é só bolinhas de sabão"



Terrina


sexta-feira, 30 de maio de 2008

Fio

Como um fio de seda que balança ao sabor do vento e das gotas de chuva que quase o partem. Frágil e resistente ao mesmo tempo. Vai e vem, roda, gira e torçe. Não parte. Estica e encolhe, desenrola e volta a enrolar qual novelo colorido.

Fio ponte com gente nas pontas... Ou talvez não. Fio ponte com gente mais que gente nas pontas.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Cerejas

Muitas vezes ouvi a canção. Dizia a voz que a vida é feita de pequenos nadas. É! E depois esses nadas bem pequenos fazem um todo até com bastante graça.

E do meio do nada aparecem palavras que não deixam esquecer o que sempre se soube, a normalidade é sempre um bocado relativa e sabe bem acordar com as unhas pintadas de vermelho e revirar os olhos e ir só porque sim.

E as pessoas humanas pouco percebem dos pequenos nadas. Porque as pessoas humanas sabem muito pouco. Nem descobriram ainda que se pode ver o sol nascer...

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Bom dia

Perdi-me enquanto deambulava. Deixei-me andar sem ver para onde ia, deixei-me ir ora virando à esquerda, ora à direita. Cansei-me e adormeci. Acho que adormeci.

Acordei agora, mas não sei onde estou... De qualquer modo também não tenho a certeza de querer voltar...

terça-feira, 20 de maio de 2008

#20

Cai a última gota de sol e a canção que ecoa por detrás dos olhos é a mesma com que tinha acordado pela manhã. Ouço-a agora pela primeira vez com os ouvidos.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Impossível?

domingo, 18 de maio de 2008

#19

Tocaram os tambores mal se viu o primeiro raio de sol. Foi duro o acordar nesse dia em que a cidade se pintou de um branco que feria os olhos dos transeuntes quase perdidos.

sábado, 17 de maio de 2008

Campos

E depois é estranho demais sonhar com campos de girassois. Mais estranho é acordar e o silêncio dominar a vontade.

E é nessas alturas em que queria ter-te ao lado para te acordar com um bom dia e um beijo. É nessas alturas em que sinto coisas confusas que deixo de saber sentir.

E do resto que falem os entendidos...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Luas

Reparo agora ao olhar para o céu que quase cinco luas passaram. E cinco luas depois, encalhado no tempo, pergunto-me no que pensarei daqui a duas mais. Se calhar é de mim, ou então as marés passaram a encher e a vazar um pouco mais depressa.

Vi ontem um monte de ossos, carne e tendões. Vi ontem tudo isso feito pé. Um pé lego. Peça a peça, da maior à mais pequena, tudo junto e bem ligado.

E vi gente a tentar sair da fila, mas sem primeiro aprender a caminhar fora dela. Cairam e eu ri só porque sim.

Sei sim que o pé jamais será pé, mesmo com todas as peças bem montadas, sei que nem todos serão capazes de dar o salto e continuar ao alto e sei que daqui a duas luas, numa noite bem amarela, poderei voltar a contá-las do zero.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

.

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem a meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos

terça-feira, 13 de maio de 2008

Changes

Era simples demais quando quase chovia. Umas gotinhas de água aqui e ali, a refrescar o ser. Meia dúzia de nuvens acinzentadas a tapar o azul que logo depois haveria de voltar a brilhar.

Mas depois as nuvens deixaram de ser só cinzentas e passaram a ser negras. Em vez de quase chover, choveu mesmo. Tanto, tanto... Ficaram inundadas as casas e as ruas deixaram de se ver, assim como o azul azul que dantes feria os olhos. Mudou o tempo sem avisar. E eu que me recuso a andar de guarda chuva...

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Rodas

Pode não ser mau chorar, é até muito bom quando a lágrima corre pela linha do sorriso mais aberto que nunca. E depois perceber que o que tantas vezes se diz é tão verdade quanto o que se sente.

A distância como um fio de elástico que estica e encolhe à força da vontade e do querer. Porque descobri um dia que não há longe nem distância, que os metros são o que quisermos fazer deles e nada vale a pena se não se sentir um bocadinho.

O resto da história é simples. Porque a tangerina é bem pequena... E agora voltei a encontrar quem julgava ter perdido há uns pares de meses. Eu!

domingo, 20 de abril de 2008

Bancos

Simples demais para poder ser complicado. Talvez complicado demais para poder ser simples, sei lá. Como na canção...

E mesmo que só a fazer de conta, os bancos nunca estão vazios. Os do carro, os da alma, os da esquina e os que guardam o dinheiro.

domingo, 13 de abril de 2008

...

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro

Ecos

"Também eu..."

(Se calhar era mentira, se calhar é verdade. Já não conto ter tempo para descobrir. Nem sempre se pode saber tudo...)

#18

Ouvem-se as pancadinhas e cai o pano. Fica confuso o público. Nada estranham os actores. Dançam agora longe das centenas de olhares parados por detrás do pano negro. Dançam e caem, levantam-se e recomeçam.

Faz frio na rua, mas há estrelas que se deixam cair em pó. Pó quente...

Deixam as pancadas e o pano, mais os olhos e a confusão dos outros. Correm agora de braços abertos. Rumo ao nada que é tudo. Entretanto tropeçam num pequeno sol que, por acaso, se não tinha desfeito. Partem-no em mil pedaços. Olham as mãos queimadas... Foi o que deu tentarem colá-lo.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cebolas

No fundo, no fundo, seremos sempre só mais uns quantos ombros a tentar erguer cidades dos escombros...

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Voltas

Era uma vez uma aldeia. Essa aldeia, como todas as aldeias, tinha casas e ruas e estradas e jardins e praças e todas as coisas que as aldeias têm.

Tudo isto seria nada, se a aldeia não fosse uma aldeia especial. Para além de todas as casas serem côr-de-rosa -como todas as nossas estradas sao pretas-, havia apenas uma lei a cumprir. Todos os habitantes, sem excepção, teriam de sorrir. Ora aquilo era muito estranho para quem por lá passava de caminho para um qualquer outro lado.

Certo dia, durante um funeral, um forasteiro ao presenciar a cena, perguntou à viúva mais sorridente que tinha conhecido na vida a razão de tanta alegria. "Mas nós estamos tristes! Não percebo a pergunta...", respondeu Margarida, ostentando o mais belo sorriso que herdara dos seus pais. Na verdade, atrás dos sorrisos estendidos de orelha a orelha, escondiam-se dores e amarguras, desgostos e frustrações...

Herminio, o forasteiro, deixou-se ficar. Margarida, ao voltar para a sua casa côr-de-rosa encontrou-o sentado num qualquer banco de jardim. Não sorria. Então o sorriso?", perguntou, "Não conhece a lei? Aqui, todos temos de sorrir. Sempre, sempre, sempre...". Herminio soltou um "não me apetece". Margarida pegou-lhe na mão e levou-o para casa. Ai finalmente deu descanso às bochechas e suspirou "a mim também não...".

Perderam-se nas horas por entre palavras e chávenas de chá. Amanheceu e Herminio partiu para voltar poucos dias depois. Trazia na mão um saco e uma lata. Margarida sorriu, de verdade e por dentro, ao ver tal figura abrir o portão. Não havia tempo a perder. Pegaram na lata e pintaram a casa de preto perante o espanto geral da multidão sorridente que se ia juntando no meio da rua. "A partir de hoje", disse Margarida, "hei-de sorrir só quando me apetecer, a partir de hoje a minha casa será negra. Negra. Porque sim...".

Nem Margarida sabia o que tinha feito. Aos poucos, as casas foram mudando de côr na aldeia e os sorrisos desaparecendo das caras. Dois meses depois não restava uma única casa côr-de-rosa e os raros viajantes e por lá passavam estranhavam ver tanta sisudez nos rostos.

Herminio e Margarida, agora que se tinham encontrado, viviam felizes na casa negra ao fundo da rua. No canto em que havia somente terra plantaram um jardim onde se deitavam ao sol e riam horas sem fim.

Numa manhã de chuva, Herminio partiu novamente para de novo voltar poucos dias depois. Desta vez trazia só uma lata na mão. Ficou feliz, Margarida, quando o viu chegar, tão longa tinha sido a espera. Pintaram a casa de côr-de-rosa num dia de sol enquanto se riam de todos os outros que nunca souberam sorrir de verdade...

terça-feira, 8 de abril de 2008

Um pouco quase muito

Eu gosto quando chove. Gosto quando chove e molho os pés na água fria. E gosto quando o vento parte os chapéus de chuva das pessoas que andam com chapéus de chuva.

E passo na rua e olho de lado quem de lado me olha.

E sinto.

E gosto quando a chuva quase molha, em dias quase perfeitos. Quase... Faltou qualquer coisa na mão estendida.

Trapo

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Núvens

Viajavam em suaves nuvens de algodão doce. Durante as viagens, maiores que o próprio tempo, falavam de mundos e lugares e vidas e sonhos e tudo e nada. E riam com a única certeza de que nada mais existe senão, o agora que era só deles. Riam tanto por tão pouco.

Quando caia a noite e o azul do céu lentamente se ia transformando noutra côr, talvez mil e uma, pensavam em descer e logo desenhavam o minucioso plano de aterragem. O cálculo ao segundo, ao milimetro...

Depois, quando chegava a hora certa, e tudo apontava para que descesssem, deixavam-se ficar a ver as soturnas pessoas que lentamente se arrastavam um pouco mais abaixo deles. Tão pequenas lá em baixo.

Comiam bocadinhos pequenos de núvem mágica enquanto desciam só porque sim. Fora de horas e longe do lugar onde o tinham pensado fazer. Ao chegar ao chão olhavam um para o outro e diziam baixinho ao ouvido: "Havemos de voltar!". E voltavam, e voltaram até em dias quase sem núvens. Mas aquelas eram mais que nuvens, como eles eram mais que gente.

terça-feira, 1 de abril de 2008

#17

Chega a primavera, tempo de limpezas. É hora de arrastar a mobilia e pintar as paredes de fresco.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Tic-tac

Lentamente os Homens transformam-se em máquinas movidas à força cruel dos ponteiros do relógio. Transforma-se o mundo também.

Pergunto-me se há uns bons pares de anos alguém desconfiava que hoje até os tectos e as paredes das casas iriam ser falsos.

Dou-me por feliz por ainda conhecer gente...

domingo, 30 de março de 2008

Memória

Porque a única coisa que queria era uma palhinha. Não queria saber dos sumos que se agitavam por dentro da máquina estranha que parecia saida de um estúpido filme antigo, não tinha sede sequer. Queria uma palhinha. Queria uma palhinha para espreitar por ela e ver o mundo muito maior. Queria uma palhinha porque sim e quase não houve quem fosse capaz de o perceber.

Para que raio se quer uma palhinha se não para beber o sumo? Parece ridicúla a pergunta... Não sei quem seria hoje sem o sumo que o homem magro que continua igual uma dúzia de anos depois me deu. Uma dúzia de anos passados e lá continua ele junto à praia atrás do balcão de madeira. Já não há máquina nem palhinhas nem gente sentada a ver o mar. Há o homem e o puto, agora uma dúzia de anos mais velho.

E no fundo, nada mudou assim tanto. Desta vez para nada queria o café amargo, só a cadeira do canto onde um dia me deram um sumo e um palhinha.

Mar

Ao longe, por maior que seja a tempestade, sempre calmo. Existe sempre a linha do horizonte, mesmo que se confunda com o céu. É possível que por vezes sejam até um só, ou então não. Só um engano para os olhos.

No entanto, de perto tudo é diferente. A calma linha do horizonte ganha vida e já não há mais a vontade de pegar nela, enrolá-la num novelo e sem ninguém ver, guardá-la bem guardada no bolso.

De perto as ondas batem com força nas pedras. De perto as ondas são enormes e assustam. De perto as ondas são pequenos e inofensivos navios de espuma. De perto as ondas não existem.

Sentado na praia o velho pescador fixa os olhos lá longe no fim do céu tentado perceber o que verá de perto mais logo. Bem sabe que por mais olhe nunca saberá com o que contar, sabe ainda que mais logo irá cheirar a maresia...

#

"Visitou-me um velho amigo
Outrora solto em meu umbigo
Eu dei-lhe abrigo na prisão"

Ornatos Violeta, O.M.E.M.

terça-feira, 25 de março de 2008

O que não existe é assim

E depois há dias diferentes de todos os outros. Dias em que nem se é capaz de vez as caras que aparecem pela frente, quanto mais sentir os sorrisos que possam ter. Dias em que tudo é uma espécie de mancha verde vómito atravessada entre nós e o mundo.

Dias em que só o corpo existe, movimentos mais ou menos voluntários, só isso. Eis que então, como por magia, alguém estala os dedos e do meio de todos os sentidos perdidos na tão grande falta deles, acende-se mais uma vela, desponta mais uma ideia, fica-se a saber que lá longe as pessoas também são más e cobardes e que nada do que te conta meio mundo e pensa outro terço faz sentido.

Costuma chover no dia a seguir ao domingo de Páscoa por estes lados. Deve ter sido da falta de chuva. Há dias demasiado estranhos para terem existido. Se calhar é só um pedaço de sonho. Estas linhas nem existem fora da minha cabeça nem ninguém as poderá ler. Um sonho, isto tudo. E eu aqui. Faltou a luz lá do lado de fora. Deve ser por isso que o despertador ainda não tocou. Um sonho, isto tudo é um sonho e nada existe. Nenhuma destas letras, nenhuma destas palavras, nada disto do que penso dentro de um outro pensamento. Não existe. Não existe? Não vai ter fim...

segunda-feira, 24 de março de 2008

Gotas

Milhares, milhões, milhares de milhões de gotas de água e uma espécie de chuva que quase molha. Horas e horas, dias, meses e anos regados a água caida do céu.

Depressa se constroi a barragem que devagar encheu. Falta sempre qualquer coisa... Faltou espaço desta vez. Não transborda, rebenta. Pedras, cimento e peixes que por uns segundos sabem ser também pássaros sem asas nem penas.

Secam as nuvens e volta a brilhar o sol. Brilhará depois a lua de noite e a terra dará mais uma volta em torno de si mesma.

Talvez amanhã volte a chover. Talvez um dia os peixes voltem a voar.

terça-feira, 18 de março de 2008

Ironia

Perguntavam-me o porquê alguns, olhavam-me de lado outros. Nunca soube explicar bem. Ainda hoje não sei. Eram tantos os que falavam nos fantasmas guardados por esses sótãos fora. Tantas vezes olhava para eles e ria ao saber que passava tardes sentado sobre meia dúzia de esqueletos. Cada qual tinha uma história, sempre diferente, pois os dias raramente são iguais... Talvez fossem valentes guerreiros Romanos, ou então vulgares mendigos sem casa.

Talvez fosse tudo mentira e não houvesse mais que terra por debaixo daquele pedaço de chão pintado a vermelho. Pouco importa, agora que já não há pão quente às primeiras horas da manhã. Pouco importa, agora que não mais cheira a café fresco, se é que o café quente pode ser chamado de fresco, dentro das paredes cor de rosa.

Nunca soube responder aos porquês, mas sei hoje que fazia sentido. Fazia sentido andar uns bons metros fizesse chuva ou frio, fazia ainda mais sentido andá-los em dias de sol. E faziam tanto sentido as palavras que na altura nunca entendi.

- Secas ou frescas?
- Sei lá eu, mas têm sido sempre frescas. Secas desta vez...

Duas semanas passaram até cair a última noite em que as viste. E por acaso, mais uma vez por acaso, antes do último gole, disseste algo que não hei-de nunca esquecer. Passaram seis anos e as flores estão iguais. As que te deram depois apodreceram na terra fria. Pena que as tivessem dado só quando já não as podias ter. Chovia há seis anos...

Nau

Os dialectos alcoólicos a meio da noite, o velho conhecido aparecido do nada com a sua garrafa ambulante logo transformada em bar fixo. A oportunista encostada ao canto do balcão qual pássaro à espera de migalhas. Tantas quantas o bolo tinha.

Depressa o sol se mostra anunciando o fim do dia. Depressa o sol se mostra anunciando um novo dia. O fim seguido do começo. Ciclo vicioso, ciclo viciado. "Porque me apetece! e depois?". E depois não há distância nem horas nem nada.(Canta e ri a menina com o bolo nas mãos). Entre a chegada e a nova partida poucos minutos passam. Bastaram, não sendo muitos.

De volta. Encontro corpos espalhados pelos cantos da casa sem perceber bem porquê. Novo acordar, novo ir. É forte o vento desta vez, forte demais. Novamente dormem e vou. Vou e volto. E ao voltar penso que se calhar tudo não passou de um sonho. Talvez tenha estado também a dormir. Talvez. Talvez o sol não tenha nascido três vezes no mesmo dia. Talvez nunca tenha sentido os degraus debaixo dos pés. Apesar de tudo tenho a certeza que sorri.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Metamorfose

A linha invisivel de querer e sentir que separa o ser de todos os outros seres que existem à volta. Por vezes esquecidos naquele alheamento tão próprio de quem por momentos se esquece que mais mundo existe para além do pequeno ponto negro que lá ao fundo dá um pouco de cor à parede branca.

Muda o mundo entretanto. O olhar preso ao ponto, a alma presa ao olhar.

Das vulgares larvas surgem, surgiram, borboletas de mil e uma cores.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Ecos

"Se pedir peço cantando
Sou mais atendido assim
Porque se pedir chorando
Ninguém tem pena de mim"

António Aleixo

Falta sempre qualquer coisa...


Um destes dias, talvez num daqueles em que chove miudinho, hei-de inventar uma outra máquina. Por enquanto nada posso fazer quanto à materializadora de coisas vistas. Mas o impossível não existe, isso é certo e sabido, e nada me garante que, por um qualquer acaso, não haja mais que um monte de pixeis amarelados à tua frente.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

#

"And I asked old Jack, "Do you remember the night
When the sky was so dark and the moon shone so bright?
When a million small children pretending to sleep
Nearly didn't have Christmas at all, so to speak?
And would, if you could, turn that mighty clock back,
To that long, fateful night. Now, think carefully, Jack.
Would you do the whole thing all over again,
Knowing what you know now, knowing what you knew then?"

And he smiled, like the old pumpkin king that I knew,
Then turned and asked softly of me, "Wouldn't you?""

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Passo

Estúpido engano este de pensar que os pés não são só nossos. Lembro-me de em tempos me criticarem o passo. Ora largo, ora breve, mas nunca o passo certo. O meu passo, sempre o meu passo.

Lembro também os dias em que as verdades absolutas eram nada mais que mentiras aos olhos dos outros, lembro tudo isso com o sorriso que se pode ter na cara tantos anos depois... Assim como recordo alguns dias, poucos, em que me apareciam certezas pela frente. Ir, ir, ir...

Falava contra o eco cruel das paredes pintadas de fresco. Ganhava forma o magro deus egipcio. O bem, o mal e a balança! Houve depois um dia em que tudo foi falso. Houve tempos para lá do dia em que tudo foi falso em que existir doía, doía demais. E doía querer e não ter, doía não poder ir. Mas a dor aguenta-se e faz-nos sentir. Transformei o não ter em não querer e o não poder ir em falta de vontade. No fundo, lá bem no fundo, continuavam a latejar os sonhos. Ir, ir, ir...

Tantas vezes a maré subiu e desceu, tantas vezes a vi depois de umas horas passadas entre carris e apostas. Tantos dias o sol se pôs. O passo. Mais uma vez o passo. Tentaram então acompanhá-lo. E acreditei que afinal fosse possível, acreditei que não poderia haver uma só medida criada propositadamente para mim. Acreditei até ao dia em que vi as cordas que prendiam as pernas. Era falso o andamento. O passo era só meu. De nada valia a vontade de o acompanhar por parte de outro alguém.

Segui sozinho o caminho, o meu caminho, por vezes sozinho demais, encontrei então à beira da estrada um pequeno monstro. Demos as mãos. Ouvi vezes sem conta as palavras que me mostrou. Ainda hoje as trago comigo.

Tempo, tempo, tempo... Passaram os dias e as gentes por mim, poucos guardei, poucos quis guardar. Eu e o monstro. À medida que os dias passavam perguntava a mim mesmo o quão justa seria a balança do tal senhor. Um deus por inteiro. Não era um semideus como se acham tantas das criaturas por este mundo fora, logo deveria ter alguma justiça em si. Morte, morte, morte, morte... Ir, ir, ir... O meu passo, eu e o monstro.

Subiram e desceram novamente mil e uma marés. Girou o mundo, cairam do frágil trapézio mihões de almas e mais uma vez pensei ser possível. Quatro pernas a caminhar lado a lado. Esquerda, direita, esquerda, direita, cadência quase perfeita. Quase. Isso. Quase, nada mais.

Sei agora mais que nunca que o passo é só meu e que a paz está no fim da linha, no fim do doce embalo da velha carruagem sem rumo. Ir, ir, ir...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Para lá do nevoeiro

A imagem de um velho de barbas conversando alegremente com uma menina simpatica. Juntaram-se por estes dias a uma qualquer esquina por mero acaso. Perderam-se nas palavras, inventaram jogos novos e riram, riram até não haver dias nem noites nem nuvens nem chão nem nada mais que não eles.

Sem tempo (coisa que não existe nas esquinas daquela terra) esqueceram-se do poder que têm, nem mais se lembraram que deles dependem algumas almas e muitos gestos. Então o riso não parou. Nem as brincadeiras por entre os olhares de uns quantos mais personagens daquele mundo estranho. Até Baco, por norma ausente da razão, se sentou por momentos a tentar perceber o porquê de tanta euforia.

Enquanto isso, longe, bem longe, tão longe que quase perto, vagueiam noutro mundo, noutra terra, outros seres. Incrédulos. As palavras, cruzadas, quase iguais, encontradas à mesma hora. O rio com dois sentidos, a mesma água. Toca o relógio, voam as letras. E por breves instantes, os risos e sorrisos não pertencem só ao velho de barbas e à menina simpática, mas também a quem nunca deixou de acreditar que eles existem algures...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

#16

E por meia duzia de papeis coloridos tudo se faz. Volta o corpo, fica o resto. Papoilas e memórias do pó e da falta. Falta de tudo, faltava tudo. E agora que tudo há, falta pouco.

Depois, já tudo se questiona. Para que serve um carro sem motor?

#15

Quando encontrar as palavras hei-de deixar aqui mais algumas...












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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Iguais

Um mundo à parte, um reino diferente. Todos iguais. Milhares de personagens frágeis em busca de um qualquer elixir mágico que lhes devolva um pouco de algo que nem sabiam ter. Centenas de batas brancas e um cheiro que se entranha no ser.

Formigueiro imenso. Trocam-se os papéis e quase rio ao pressentir a impotência de muitos que durante toda uma vida deram talvez importância demais a meia dúzia de números. Vergam-se agora ao peso das carteiras que trazem debaixo do braço.

Olham para o lado e vêm-se sós, num mundo que fingiam não conhecer. Chegados à fila da morte, tentam voltar atrás. Tarde demais. Ali são todos iguais e já não há excepcções à venda...

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Quase

Tenho saudades dos dias em que quase chovia, em que quase aparecia o arco-iris, em que o quase era toda uma vida.

Saudades de não ter de marcar hora para a consulta, saudades das visitas de médico quando o tempo se fazia curto e mole.

Saudades das palavras que quase se diziam e dos saltos que quase se davam.

Saudades de acordar quase feliz.

Barco

Pouco acima do rio, há um barco que navega todos os dias ao sabor do vento. Pergunto-me quantos dos que passam por ele todos os dias já o viram.

Indiferente, a quem vê, a quem sabe, a quem olha, a quem sente, naufraga em torno do seu eixo ferrugento.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Rumo

Gostava por vezes de escolher o caminho. Pensar e ponderar e isso tudo. Fazer o mapa e tomar as decisões de amanhã e depois. E prever as viragens, congelar as palavras, pré-fabricar os gestos.

Lembo-me muita vez dos comboios e das linhas, tão certas, tão certas, tão certas... As agulhas lá no sitio. Esquerda, direita, linha um, linha dois, linha infinito mais mil. Tudo estudado e mais que previsto, ao minuto, ao segundo...

Mas não. Habituei-me a andar a pé e a desviar-me das pessoas mais mal cheirosas que encontro nos passeios. Na hora. E tantas vezes me engano no caminho, tantas vezes perco o fim, tantas vezes vagueio sem rumo.

E é por isso, só por isso e por algo mais que não sei explicar, só sentir. E há dias em que existir dói. Há dias em que ser cansa. Sobram outros em que se percebe que a dor nos lembra estarmos vivos e o cansaço nos ensina a aproveitar a paz saida de um mar laranja e feliz.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Tempos

são velhas as canções cantadas em dias de chuva no passar das horas que voltaram a perder o passo. são estranhos os refrões das canções velhas.

e no desenrolar vagaroso dos sons abre-se uma janela algures, para que o homem de dedos já queimados pelo tempo fume mais um cigarro ao ver os putos levados pela mão para longe. para bem longe do sonho cantado agora numa das velhas canções. é verde a janela. e de madeira.

amanhece mais uma vez...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Falhas

Mal deixaste o bibe sujo, vestiste o fato novo. Tanta foi a pressa que te esqueceste de experimentar as calças largas. Não mais te sujaste, não voltaste a rebolar no chão que os fatos são caros e a vida não está lá muito boa para gastos...

Não quiseste mais saber do que foste nem dos que foram contigo. Agora, na secretária de vidro com vista para os barcos que ao longe vão largando pequenas nuvens de fumo negro, agora que os dias não acabam mais ao pôr do sol, agora que já não te escondes no arbusto nem te atiras ao poço de lama, agora que já não corres, pensas só nas horas e nos dias, nos anos e nos meses, acumulas certezas e planos sem mais te lembrares dos momentos em que foste a pessoa mais feliz do mundo só por ter um prato acastanhado e sujo nas mãos.

Porta. Elevador. Carro. Casa. Sofá. Noticias...
"... houve um enorme derrame de crude algures no mar..."
- Onde? Sabes?
- Foi mesmo perto de ti. Não viste?
- Não reparei...

Há quanto tempo deixaste de olhar o mar à tua frente?

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Poeira

Penso por vezes no mar de acasos que surgem dia após dia. Cada palavra, cada passo, cada sonho...

Pergunto onde fica o sentido. Que sentido fazem hoje as palavras de há tantos anos atrás? A fruta apodrece, as verdades mudam. Para que foi aquele grito? A viagem, o verde a ferir os olhos mal a noite tinha caido, a certeza de ser possível. O puto cresceu, a estrada mudou, o velho quase já não fala, a casa caiu. Pouco resta da tarde quase noite em que as pessoas se tornaram tão pequenas quanto os 200 metros de longe quiseram...

E a lágrima que não caiu? O gesto preso...

Somos feitos de quê afinal?

"Sabes, não me importei nada. Não conhecia ninguém... Até posso perceber que as pessoas de lá estejam tristes e sintam dor e tal, mas eu não estou!"

Hoje

Um vazio imenso. Só um monte de osso e carne que caminha sem rumo...