sábado, 21 de março de 2009

Dez

Dez, dois, quatro, seis... É um bocado estranho isto de falar de números e números e conversões de metros em coroas e quilómetros em dias, anos-luz em algo que se entenda...

A distância que a luz percorre num ano? Como se não fosse do senso comum que a luz é uma coisa que simplesmente é... Anda lá agora ela a passear pelo espaço, do sol à terra, da terra à lua de uns olhos para os outros. A luz é quieta e a terra redonda e está quieta também e o sol é que gira.

Lembro-me da aranha e antes de dormir como papas de leite mesmo que só a fazer de conta, mesmo sem sono nem dormir nem cama nem lugar nem leite nem nada. Resta o pão.

Tem uma certa graça tudo isto.

Talvez agora seja já nove. Sejam. E de caminho, quantas partes tem um frango? Um frango assado...

Estações - Milan

quarta-feira, 18 de março de 2009

#29

E sem que ninguém o pense, pela noite letras vermelhas vão fazendo frases nas paredes que por acaso nem são de papel mas sim de madeira, primeiro timidamente, mais tarde, subitamente, ganhando proporções equivalentes a um banho de sangue.

Se bem que poucos alguma vez as entendam, que há coisas completamente independentes da lingua e um um pato-vampiro pode perfeitamente ser um chinês mal-cheiroso, lá estão a sorrir para quem passa.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Rae

Dizia a lili que estar vivo é o contrário de estar morto, talvez não fosse assim tão absurda a frase embora o pareça.

Mozart, está vivo ou morto? Shakespeare, Orwell, Saint-Exupéry, Cobain... Estes todos que se conhecem só das palavras e ainda mais alguns que pudémos abraçar antes de dormir e sussurrar meia dúzia de palavras ao ouvido. Mortos ou vivos?

E quantos mortos andam pendurados pelo mundo mesmo que respirem todos os dias, que o coração lhes bata a todos os segundos?

No meio disto tudo, os sonhos. Aqueles de dormir, e os outros de olhos abertos que fazem olhar para o lado e estender a mão mesmo que agora nada tenha que ver com vida e morte mas sim com outra qualquer coisa também quase surreal, como o facto de as formigas trabalharem para o formigueiro enorme e eu não achar grande piada a abelhas a não ser desenhadas em qualquer coisa, se não também podia falar de hexágonos perfeitos.

Porque hoje havia alguém que vendia girassóis na rua.

Estações - Wien

segunda-feira, 9 de março de 2009

Preço

Dois cêntimos. Valem quanto? Tanto quanto a vida dizem uns, mais que ela dirão outros. E o sol? Vale o quê? A algazarra nas ruas, o barulho dos autocarros, o poder ver um planeta estrela durante quase todos os dias que o ano tem, o saber em que estado está a lua -se bolacha trincada, se bola redonda e brilhante-, o sorriso do puto reguila às primeiras horas da manhã, a gorda do café que anda arrastando os pés tal a falta de força que tem -para viver também-, o travo amargo do café tantas vezes bebido só porque sim, o frio das pedras húmidas, tudo coisas que são quase nada para quem não repara.

Ouço uma velha canção que fala de gente que vive sem dar por nada.

Sim, que há quem viva sem saber da festa e dos foguetes, sem saber da primeira estrela que se mostra todos os dias, da cidade debaixo da cidade, da beleza das letras independentemente da forma com que as juntam, da distância que a luz percorre num ano e que comparados com a dimensão de um formigueiro à escala da formiga tudo o que os homens erguem soa a minúsculo. E as pontes? O cerco às cidades? Coisas, são tudo coisas...

Do fundo do tempo fala uma voz rouca e cansada, diz que o amanhã não existe, fala de meteoritos e bombas, carteiras roubadas e sorrisos. Sorrio também e adormeço embalado pelas palavras, afinal, nem todos tiveram o prazer de pisar um chão-obra-de-arte enquanto o tempo parava de dois lados da mesma rua.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Das coisas que levam a todo o lado




Brno Technical Museum

segunda-feira, 2 de março de 2009

Da torre


A vista...

sábado, 28 de fevereiro de 2009

E depois há os outros

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros…

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido…
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos…
Se queres matar-te, mata-te…
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! …
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo…

Álvaro de Campos

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Horas

O gelo derrete num barulho irritante. Um tic-tac diferente daquele dos segundos, como se o tempo tomasse outro compasso marcado por gotas de água. E num repente, entre duas, que vão caindo, notam-se coisas que nunca antes se tinham visto, como aquele rasgo pequeno no papel de parede já gasto, ou até mesmo as estrelas deixadas no tecto por alguém que gostava de adormecer a olhá-las. Perderam o brilho entretanto e já nem o sorriso desenhado na lua apresenta a mesma nitidez.

O crocodilo de neve desapareceu e há perguntas ainda sem resposta.

Porque é que os pinguins não congelam?