quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill, Poema Pouco Original do Medo



domingo, 23 de agosto de 2009

da lanterna azul

As coisas nunca são o que são. A cada segundo deixam de o ser para depois se tornarem noutro algo qualquer. Como as ondas que batem na areia da praia. O centro do mundo era um lugar abstracto e sem nome. Agora[até quando?] o centro do mundo é um lugar pequeno e não muito lindo embora já tenha nome e cor e cheiro. Bratislava e a estação podre e velha e os pedintes e os panados oleosos e as sandes de frango com sabor a nada e um homem mal encarado a fazer de polícia e os aviões ali ao lado e centopeias quase gigantes e a barriga apertada por borboletas invisiveis e os abraços mais fortes que o fio com que um dia vi uma aranha pendurada no tecto. Depois há aquela coisa de ninguém estar bem com o que tem e estar sempre à espera do que há-de vir, a pensar no que já passou. Está tudo escrito nos livros e cantado nas canções, é só preciso ter olhos para ler e ouvidos para ouvir se bem que há quem leia sem ver e consiga perceber as palavras que te saem da boca sem que um único som se forme algures no cérebro. Adiante, há quem se junte em largos para ver vacas a arder, há quem prefira ver o sol arder, outros ainda gozam mais com pinheiros e eucaliptos. Gostos não se discutem. Mas resta sempre aquele fascínio pelo fogo nem que seja fogo colorido no céu escuro, ou então o outro que nem cor tem[pelo menos enquanto as mãos não rebentam] mas faz pum-pum-pum para alegria de todos[ou quase]. Pum-pum-pum, podia ser pão pão pão para alguém que o não tem, mas festa é festa e isto não pode acabar e afinal para um pão não há quem não tenha dinheiro, excepto quem o não tem, claro está. Agosto é um mês fodido. Mais uma vez aquilo das coisas mudarem a cada tic-tac. Agosto já foi diferente no tempo em que os dias corriam depressa e cheiravam a sardinha assada à hora de almoço. E depois havia sempre um dia[ou dois, ou três] em que o mar se achava maior e fazia os barcos de borracha andar pelas ruas e isto era sempre assim, certo. Era. Hoje ao almoço houve gripe A, a derrota do sporting[pena] e cancro[mais um], a Naíde está agora a saltar[todos sabemos que é boa mas há sempre a coisa da necessidade da medalha], logo à noite joga o benfica e por breves minutos o país entrará naquele estado de semi-hipnose-crónica[afinal há coisas que continuam iguais]. Falta só dizer que o mundo irá acabar a uma sexta-feira[juraram-mo a pés juntos], embora ainda não se saiba bem qual. Há coisas que só se descobrem com um pouco de atenção.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

(alindar)



Enquanto as palavras não aparecem. Das mãos a arder em sangue às lágrimas perdidas na viagem diferente de todas as outras. Eis tudo!
(os lábios molhados a sal. brno-bratislava. era tudo quase simples e tu a chegar. era tudo quase simples e borboletas na barriga. era tudo quase simples e tu a chegar. tu a chegar...)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

#

pouco mais de uma hora e a mesma pergunta repetida a cada porta. pouco mais de uma hora duas vezes. o cheiro a ferro e o cheiro a mar. os passos rumo ao nada. a resposta curta. simples. dantes.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

#

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

#

Bem sei que tudo é natural
Mas ainda tenho coração...

Boa noite e merda!...
(Estala, meu coração!)
(Merda para a humanidade inteira!)

Na casa da mãe do filho que foi atropelado,
Tudo ri, tudo brinca.
E há um grande ruído de buzinas sem conta a lembrar

Receberam a compensação:
Bebé igual a X,
Gozam o X neste momento,
Comem e bebem o bebé morto,
Bravo! São gente!
Bravo! São a humanidade!
Bravo: são todos os pais e todas as mães
Que têm filhos atropeláveis!
Como tudo esquece quando há dinheiro.
Bebé igual a X.

Com isso se forrou a papel uma casa.
Com isso se pagou a última prestação da mobília.
Coitadito do Bebé.
Mas, se não tivesse sido morto por atropelamento, que seria das contas?
Sim, era amado.
Sim, era querido
Mas morreu.
Paciência, morreu!
Que pena, morreu!
Mas deixou o com que pagar contas
E isso é qualquer coisa.
(É claro que foi uma desgraça)
Mas agora pagam-se as contas.
(É claro que aquele pobre corpinho
Ficou triturado)
Mas agora, ao menos, não se deve na mercearia.
(É pena sim, mas há sempre um alívio.)

O bebé morreu, mas o que existe são dez contos.
Isso, dez contos.
Pode fazer-se muito (pobre bebé) com dez contos.
Pagar muitas dívidas (bebezinho querido)
Com dez contos.
Pôr muita coisa em ordem
(Lindo bebé que morreste) com dez contos.

Bem se sabe é triste
(Dez contos)
Uma criancinha nossa atropelada
(Dez contos)
Mas a visão da casa remodelada
(Dez contos)
De um lar reconstituído
(Dez contos)
Faz esquecer muitas coisas
(como o choramos!)
Dez contos!
Parece que foi por Deus que os recebeu
(Esses dez contos).
Pobre bebé trucidado!
Dez contos.

Álvaro de Campos

sábado, 25 de julho de 2009

2

o corpo começa a falhar já os passos tantas vezes dados na mesma estrada de terra batida. o pó levanta mas agora não se aguenta no ar como dantes que o chão fez-se negro e duro. os combates são assim. a táctica do quadrado é demasiado velha e na escola não nos ensinam outras. na escola também não ensinam que a vida é uma puta gorda nas pernas e de tatuagens desbotadas nos braços que engata nas tascas escuras da cidade deserta pelo pôr-do-sol. são coisas que se vão aprendendo à beira de um balcão velho. mas a rotina é assim e depois é demasiado estranho não haver uma luz pequena a amparar o inicio do sonho, do sono, dos sonhos. quase absurdo as varandas continuarem a cair pelo rio mas agora sem gente sentada nelas. o tempo tem destas coisas e depois as pessoas vão ficando confusas quando vêm almas arrastadas em direcção a qualquer coisa que nunca pensaram querer mas vão querendo porque as histórias são quase todas como aquela dos macacos na jaula. como aquela coisa de querer imensamente uma sardinha assada. as canções ainda são aquilo que vão aguentando o mundo mas só em certos dias que nem sempre se pode jurar tudo e mais alguma coisa e na verdade há vidas que cabem até entre duas paragens de autocarro e outras que não iriam caber nunca nem numa imensa volta ao mundo. são maneiras de achar o que se vai sentindo e vendo. mas os autocarros têm o defeito de não serem comboios nem andarem sobre carris. de qualquer maneira há agora uma luz diferente a entrar pela janela. as cortinas passam a ser coisas muito estranhas quando nos damos a viver num mundo sem elas. bolas pretas numa folha de papel diferente, com letras e desenhos e linhas que são estradas e linhas. bolas pretas que hão-de passar a vermelhas quando o papel for outro. a lua agora é também ela uma linha fina fina para daqui a poucos dias ser também uma bola. amarela. a propósito encontrei ainda esta semana um homem assim. amarelo. mas mais pau que bola. coisas que a tal puta de tatuagens desbotadas nos braços faz quando o dia nasce. dizem que dorme nunca, embora não o acredite. acredito nas formigas e nas abelhas muito embora prefira as primeiras às segundas, acredito também nas aranhas e nas cidades imperfeitas com pedaços de chão esburacados e escadas polidas por milhões de passos e palavras. trinar é uma palavra linda.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

e a cada dia que passa cada noite é como que um poço cheio do nada mais negro que pode existir. um vazio profundo e avassalador que corrói a alma. a cada pôr do sol o medo de que a manhã não surja depressa. a angustia das horas que teimam em não passar. o horror dos sonhos. e pensar que em tempos a noite era uma dádiva das horas que corriam depressa demais

#

ouvir as vozes que falam de cavalos e sangue nos cavalos que dançam a meio da tarde por entre o pó que se levanta do chão. e depois ver um chapéu ao longe na cabeça de um puto que podia não o ser. o sol vai caindo, arrastando o dia para outras terras mais distantes e a lua por enquanto ainda se mostra... pela manhã mais alguns hão-de partir rumo a outro mundo num outro lado da bola a que se dá o nome de terra. achatado nos pólos, o globo. o fumo, as cebolas ou qualquer outra coisa fazem com que os olhos se molhem.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

do(s) Mundo(s)



no fundo são só pedaços de frango e diferentes maneiras de olhar para eles.

"há quem viva sem dar por nada
há quem morra sem tal saber"


(e são seis minutos daqueles que valem a pena...)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

do ar

Na escola, por entre dois chutos na bola rota ouvia falar de medidas e números e distâncias. Metro, decimetro, centimetro. Segundo, minuto, hora. Fez-me sempre alguma confusão a história do ano-luz, como se fosse possível entender na altura que até a luz se move. Tudo tão certo e alinhado. Depois chovia em pleno Agosto e ninguém percebia nada.

Mas as medidas são só mais uma coisa que o homem inventou por ser incapaz de ver o mundo como na verdade é. A mania crónica de pôr tudo e mais alguma coisa em caixas quadradas demais, mesmo que a olho nú a maioria dos objectos nem tenham forma. Medidas, caixas, etiquetas, rótulos...

Como se três horas e meia alguma vez pudessem ser diferentes de três horas e meia, como se dois cêntimos fossem mais que duas reles peças de metal, como se os relógios pudessem parar as horas todas durante a noite e fazer a manhã tardar por dois dias, como se tudo isto fosse possível. Como se o mundo todo estivesse à distância de um sono mal dormido embalado por um roncar de motor...

Como se. Como se tudo fosse verdade para alguns sendo mentira para outros, como se fosse possível haver maneiras diferentes de olhar a lua em dias que se mostra cheia, como se fosse possível haver mais que um deus aos olhos de quem o acredita, ou até, como se algum dia pudesse o chão abrir-se em dois ao som de um qualquer leão imaginário a rugir.

Prefiro o caos das formas às caixas quadradas, que me desculpe a "Humanidade".

quinta-feira, 9 de julho de 2009

quarta-feira, 8 de julho de 2009

o lado e a garrafa. a mão do corpo sem nome e a tua, também ela quase sem cor, quase sem brilho. o negro da noite salpicado a pontos de luz pelo brilho das estrelas e numa outra parte do mundo, ou talvez aqui ao lado milhões de almas viajam em comboios que levam a todo o lado e a lado nenhum.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

#33

"E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida..."

Fernando Pessoa

sexta-feira, 3 de julho de 2009

#32

no fundo do poço cai o corpo na lama mole. desfaz-se a carne, perde-se a alma, sobram os ossos. o poço não tem fundo. o poço tem lama no fundo. as fendas nos ossos contam as histórias que nunca chegaram a ser palavras. histórias de um tempo em que se marcava o corpo ao ritmo das quedas no chão por entre choros e gargalhadas.

no fundo do poço, na pouca água que ainda resta na poça pequena boiam sorrisos e olhares mais uns quantos pedaços de mãos partidas pelo tempo. o mesmo tempo que cavou o poço até este não ter fundo onde repouse a água. onde descansem os ossos. onde morra o corpo cansado da vida vivida a correr por entre os espaços que as horas abriram no velho relógio cheio de pó. faltou-lhe a corda, parou o tempo. deve ter sido por isso que os dias se tornaram todos iguais e os gestos se passaram a esconder no mesmo baú onde se foram fechando também as palavras e as entrelinhas a sete chaves, logo torcidas até partir.

Definições

Casa é a rua e o banco pintado de verde, as pedras frias do chão e a chuva a molhar a cara. Casa são sorrisos abertos e trapézios pendurados no tecto. Casa é o relógio parado. Casa são escadas castanhas debaixo de estrelas. Casa é uma mão. Casa é uma canção a meio da noite. Casa é tudo o que não há-de caber nunca entre quatro paredes e um telhado.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Die mauer



às vezes parece que o tempo não nos ensinou nada...

Estações - Berlin

terça-feira, 23 de junho de 2009

Quase

A palavra toma a forma de algo mais e no fundo será sempre a falta de algo a comandar o lado para onde o mundo há-de girar enquanto, ironia estranha, as borboletas entram no quarto pela janela entreaberta e esvoaçam embalando os olhos de um corpo sem sono.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Tamanduá


"o sol espeta-me agulhas nos olhos: agulhas feitas de linhas de luz. Mas continuo sempre, continuo sempre, continuo"

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos

domingo, 21 de junho de 2009

Tijolo sete

O céu por cima, piceladas de nuvens no tecto azul. Um sotaque meio manhoso e a espécie de casa a muitos metros de distância. Talvez anos-luz. As mais que vistas uvas de barro coladas à parede e o chão quase de pó agora coberto por ladrilhos frios, gelados. A canção-vida-destino-história numa voz desafinada. Coisas simples. Tudo coisas simples e uma luz que teima em não acender.

Tic-tac...

da palavra

"Aprendemos desde pequenos que saudades são coisas boas. Vem nos livros. Conhecemos os poemas de cor. Se a alma dói, dizem-nos que é sinal que se tem qualquer coisa no peito com que doer. Se nos lembramos sem nos querermos lembrar de uma mão que não podemos agarrar, a deixar cair um cigarro, dum cais, dum riso, dizem-nos que isso é bom, que é uma prova de amor. É como dizer que deitar sangue da cabeça quando se bate com a cabeça no chão é bom, porque é sinal que se está vivo.

A ausência, estão sempre a ensinar-nos, é quase melhor do que a presença. A saudade embeleza os sentimentos. A memória melhora. As lágrimas lavam a vista. A saudade dói, mas é doce. É o que nos dizem."

Miguel Esteves Cardoso, A Aventura das Saudades
e era tão mais fácil quando num raio de sol se encontrava toda uma vida

terça-feira, 16 de junho de 2009

do ponteiro dos segundos

O bar mudou de nome, de cor, de gente, de gentes. Acabaram os pratos a voar e os gritos a meio da manhã e o relato da vida do Sr.Freitas. Acabou o preto sem que tal se pudesse evitar. Arrancaram primeiro o prego da parede para depois desaparecer a guitarra e qualquer dia serão as palavras na parede do outro lado...

E a Maggie, onde pára? E todos os outros que foram passando?

Agora até já se atravessa o rio por uma ponte nova. Apareceram livros, canções, filmes... Como é que é possível que se tenha vivido num tempo sem “Fon-fon-fon”? Criaram-se peças de teatro fantásticas e outras menos boas. Abriram bares, fecharam bares, bares mudaram de nome, mudaram de sitio. Acabou o D.D. e o karaoke da quarta também já não é na mesma rua. Também já não há a Chica para cantar e chorar depois aninhada no meio de um corredor.

Descobriram-se varandas, túneis, caves e peles de javali penduradas no tecto.

Dezenas de ovos a voar, um fósforo queimado, centenas de nomes, milhares de gritos. Quantos quilos de carne e batatas? Oito dias passaram a dez.

Rosas, girassois e flores de imitação. Comboios, aviões, autocarros, carros, pés, quilómetros, metros. Chãos de pó, chuva miuda, sol abrasador, brisas leves, areia, jardins. Caixas, ferramentas, o primeiro sábado do primeiro fim-de-semana de Setembro por volta das três da tarde.

Palavras a fazer doer mais que ferros em brasa cravados no peito.

Morte, morte, morte.

Casamentos, divórcios, zangas, partidas, ilhas.

Bengalas e identidades queimadas, fogo, chamas, quente. Andarilhos, sapatilhas amarelas, amanhecer, escadas, ruelas, pés descalços, corridas, “foda-se!”.

Caixas de correio, quartos, barris e copos. Personagens que vão e vêm e passam e entram e saem e desaparecem e reaparecem e desaparecem de vez e tudo isto ao ritmo marcado pelo tic-tac do velho relógio. Latas, garrafas, papel, preto, preto, preto, “vai!”.

Os mapas agora alinhados à direita da estante, o algodão a repousar ao lado e uma aranha a brincar no fio de teia que pende do tecto.

“O mundo nunca deixou de mudar mas lá no fundo é sempre igual”
.

Eles existem I

Enquanto as moscas batem na janela...

...descobri que tenho muitos problemas o número 2.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Não cá

Uma casa ao lado, trinta ruas à esquerda, no andar de cima, três andares acima, três quartos para a direita, algumas centenas de quilómetros para oeste, mil para sul. Algures noutro lado que não aqui, noutro eu que não eu mesmo, lá, além.

Restam os espelhos e os olhos para que o engano persista, para que tudo seja, aparentemente, normal.

Dói-me a cabeça embora não doia.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

(Um)a ironia

"Uma cidadã italiana que devia ter embarcado no voo 447 da Air France, mas não chegou a horas ao aeroporto, morreu num acidente de automóvel na Áustria."

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Junho, 10

No dia em que deixemos de pensar pequeno. No dia em que não se sonhe mais em ser a Califórnia da Europa.

No dia em que a Califórnia deseje ser o Portugal da América.

Será aí cumprido o destino.

Que levante

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!

Valete, Fratres.

Fernando Pessoa, "Nevoeiro"

terça-feira, 9 de junho de 2009

A cabeça explode ao som de gargalhadas mil dentro do sonho mal sonhado

Gargalhadas mil a acabar o sonho. Mais um.

Junho, 9

O medo.

O medo de abrir a porta e não haver mais chão para pisar como acontece naqueles sotãos, que por vezes se encontram por ai no meio de ruas semi desertas, sem escadas, só com um buraco tapado por uma porta de madeira.

Duas agulhas pequenas.

O papel de parede já gasto a chamar as unhas roidas, a noite na rua e o candeeiro de luz amarelada. Sempre a luz amarela a iluminar os sonhos. Amarelo até que nem é uma palavra feia. Outras há mais bonitas, alalia, por exemplo. Andarilho, terrina, lápis... Divagações parvas e o medo escondido debaixo do tapete.

Números na ponta dos dedos, à frente dos olhos, medidas e contas agora cada vez mais difíceis de fazer que isto das contas nunca foi simples que há sempre sempre alguém para lembrar que a distância entre dois pontos é sempre infinito. Sempre!

Lá em baixo há corpos que se arrastam rumo ao nada um pouco mais abaixo, ao fim da rua que é a descer. Lá em baixo não há sótãos e os monstros vivem na terceira casa do lado direito, toda a gente sabe.

É mais um segundo, minuto, hora, dia, mês.

Mas há frases que existem escritas por dentro da pele.

E o sol nasce às quatro e meia da manhã.

domingo, 7 de junho de 2009

Contas

1,
29,
682,
770,
68,
120,

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Junho, 4


"que a vida sem ti morreu"

terça-feira, 2 de junho de 2009

Números

Os aviões vão caindo pelo mundo,

"Todos os dias, há mais 6.800 pessoas infectadas pelo vírus da sida e morrem 5.700 doentes, de acordo com o relatório da ONU sobre a doença no mundo em 2007"

"Mais de três mil crianças morrem de malária por dia na África"

"Mais de dois milhões de pessoas morrem de fome a cada dia"

e ao cairem até que sentimos coisas estranhas e até que aparece logo alguém a falar nas mensagens de ultima hora, logo num lugar onde há tudo menos rede. Whisky, café e chá, vinho tinto talvez haja... Rede, podia haver até uma rede antes de chegar ao mar. E se houvesse tinham morrido menos duzentos e qualquer coisa. Duzentos e qualquer coisa mais um ou dois, os importantes, os que se conhecem que os outros serão sempre só numeros... Como os 5700 + 3000 + 2000000.

Afinal de contas não há-de ficar ninguém por cá. Mas quantos de nós não gastávamos um euro que fosse para salvar uma daquelas vidas? Até um bebé morreu...

Lembro-me agora dos que acusam o senhor Adolfo de ter tentado matar seis milhões. Isso dá três dias dos nossos não é? Ou será menos?

Matámos quantos hoje?

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Notícias

Junho, 1

Praha, 2009

sábado, 30 de maio de 2009

Manhã

"não sou luz da serra
nem sombra nem luz
nem sombra da noite
no alvor da madrugada
não sou coisa nem nada
talvez louco
o louco não tem número
o limite da soma é o vazio"

Manel Cruz, "Canto dos Homens Conto"

quarta-feira, 27 de maio de 2009

#31


[grito]



era isto.

Hoje

Uma biblioteca enorme,
Espaço,
Calor,
Pouco mais de um euro, não tão pouco como dois cêntimos,
Frango,
Batatas,
Frango,
Arroz,
Relva,
Garrafas,
Frio,
Chuva,
O velho bar,
Corredor,
Chão,
Noite,
Fogo,
Papel,
Gritos,
Música,
Palavras,
Portas,

E todo o vazio que se esconde algures no meio do ar,

E uma cara, uma voz, uma mão, um sorriso, um par de olhos,

Longe.

Restos


Oświęcim

segunda-feira, 25 de maio de 2009

domingo, 24 de maio de 2009

Estrada

Os milagres acontecem. Em dias estranhos. Em dias que depressa se transformam em noite e novamente em dia. Em noites em que as linguas se pintam de negro e deixa de haver longe. Em estradas onde carros se conduzem sem mãos e os postes têm o cuidado de se desviar.

#30

A inveja é, de facto, uma coisa fodida.

dos Rinocerontes cor de mel

Preto e branco.

As fotografias velhas espalhadas pelas paredes agora meio amareladas pelo tempo mas que já foram brancas, cal. As teclas do piano abandonado a um canto. Uma televisão que até mostra imagens coloridas mas que podiam ser só como dantes.

Preto e branco, preto e branco, preto e branco.

Dois gatos, duas cores.

Dois cães, duas ruas, duas casas.

Os ratos são cinzentos. Alguns, pelo menos, que depois há os ratos brancos e os outros de mil e uma cores.

Ratos de mil e uma cores.

Isto vai tudo dos olhos de quem vê...

E se as teclas do piano fossem pintadas de verde e rosa?

O som seria igual que isto há sempre dois lados, o de quem suja as mãos para fazer as cordas cantar e o de quem se limita a fechar os olhos para as ouvir. O som seria sempre diferente, o som será sempre diferente, o som é sempre diferente para quem se senta a ouvir. O verde e rosa de quem toca subitamente descolora. O preto e branco ganham cor.

Mas isto são só analogias de cores, sons e pedacos de carne a bater na madeira.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Estações - Bohumin

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Dias

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.

Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos

sexta-feira, 15 de maio de 2009

da falta

Uma pergunta redundante feita dia após dia como naquela história do espelho mágico.

Será, será, será?

Pergunto-me porque não são verdadeiramente simples as coisas aparentemente simples. Sem resposta e todas as perguntas são agora em vão. Como a neve onde antes afundava os pés e que agora não passa de uma imagem desbotada na memória.

Frio. Frio na mesma.

E o descobrir...

Quando for grande hei-de ser caçador de borboletas. Hei-de apanhar mil barrigas delas. Mas mil barrigas das grandes.

Talvez nesse dia o mundo se pinte de outra cor...

Poiso

Talvez seja do álcool a menos no sangue. Ou então foi a chuva que tirou o pó do ar mas nem por isso o deixou mais leve.

As moscas sentem?

Diz-se por aí que o criminoso volta sempre ao local do crime, muitos há que assim vão sendo apanhados. Faz-me lembrar uma casa cor de rosa e as vezes que lá ia, mesmo sem crime, mesmo sem ser criminoso, mas voltava sempre sempre. Enquanto houve casa e café acabado de fazer.

Depois olho para trás e o que me sai é só uma metáfora mal amanhada. A vida são só casas. É isto! Vamo-nos habituando, pintando as paredes, arranjando o chão e o espaço à nossa maneira, limpando o pó à janela verde... E um dia chegam pela madrugada bandos de espingardas com homens por perto e a casa passa a ser só tijolos e telhas e pedaços de madeira [há sempre duas maneiras diferentes de ver a mesma coisa] e vidros que já foram copos espalhados pelo chão.

E tudo é um resumo simples ou mero "dejá vu" enquanto os dias correm.