segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

de facto

o mundo tem uns conceitos de normalidade algo estranhos

31 anos depois I

"Entretém-te, filho! E vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada! Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos, com computadores, redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!"

José Mário Branco, FMI

domingo, 10 de janeiro de 2010

das voltas

"Mundo puro e circular: quatro senhoras inventaram a diplomacia rotativa do bolo. Uma fez um toucinho-do-céu e deu-o a outra para agradecer um favor, esta passou o bolo a uma terceira por causa de uma festa,  a terceira não o serviu na festa e, como devia um bolo a uma colega, deu-lho mas fazendo de conta que a obra era sua, e a colega finalmente, lembrou-se de fazer simpatia a outra amiga, um toucinho-do-céu a pensar no futuro. E a verdade é que a merda do bolo deu a volta a quatro frigoríficos em quatro dias, de travessa em travessa a secar a capa de açúcar, escurecendo a baba do ovo, perdendo o odor da amêndoa para, finalmente, reentrar em casa da mesma senhora que o tinha cozinhado e que, sendo diabética, não o podia comer, embora comesse, as nossas diabéticas comem doces até cegarem ou perderem as extremidades por amputação.
   - Espero que goste, dona Natalina, tenho um fraco no ponto-rebuçado.
   - Olhe, leve já o naperon, por acaso não é meu. É a única coisa aliás.
Universo que expande e encolhe, nódoa de chávena numa mesa de café."

Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

solstitium

hoje foi o mais curto dia do ano. lá fora a lua cresce a quase sorrir.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

dos pregos

acabou a estrada. afinal as bermas não eram paralelas perfeitas que só aparentemente se juntavam ao fundo, no fim, aparentemente. eram uma outra coisa e a estrada acaba mesmo como se imagina. pelo menos eu. uma cascata em bico que dá para lado nenhum. dizem que é o lado do medo. talvez seja verdade mas isto são palavras já tão gastas, tão gastas, tão...

o rasto de garrafas e flores mortas ficou para trás. trás daqui, frente de outro lado qualquer. afinal é uma roda não é? é isso que nos ensinam na escola. a terra é uma roda e as bolas são rodas e os carros são rodas e o que não roda pára e as rodas para um lado e para o outro e as rodas para rodar e girar e saltar e, talvez, ser, ou não. deixar de existir.

as definições estão todas erradas. conheço pelo menos uma mão cheia de imortais que, a esta hora, já deixaram de ser carne para ser bicho e couve e, quem sabe, semente de girassol no bico do pássaro apanhado no vôo por um gato sem o olho esquerdo. há gatos sem o olho esquerdo, não é por isso que deixam de ser gatos. os pássaros que perdem as asas é outra conversa. os imortais. deixei de gostar de pombos às três da manhã de um dia de março enquanto um respirar dorido era tudo o que ouvia. e andam aí, aqui, em tudo e em todo o lado. mas não se mostram a todos, lá terão as suas razões. mas eu vi! era uma esquina e a geometria toda em cima da cabeça. era isto. e foi, depois, num outro dia, a mesma mesa e o cheiro que há em mais lugar nenhum. e o resto.

a estrada que acabou nas duas linhas feitas ponto, ponto feito fim, fim feito medo. a ultima palavra dos Lusíadas é inveja. as aranhas têm oito patas e as formigas seis. há gente em pânico para que se defina  finalmente o quilograma. as pessoas são más. os cogumelos são fungos. six feet under tem um fim de lamber os dedos. um ano-luz não consigo perceber o que é.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

anniversarìu






"nem choros nem medos nem uivos
nem gritos nem pedras nem facas
nem fomes nem secas nem feras
nem ferros nem farpas nem farsas
nem forcas nem cardos nem dardos
nem guerras"


José Carlos Ary dos Santos, Canção de Madrugar

sete de Dezembro

(...)

sábado, 5 de dezembro de 2009

trilho

a mão na boca evita a saida das palavras que não há. vinte e oito vezes um, dois, três, vinte e cinco. escondem-se algures entre as mãos bem abertas e pousadas no chão queimado, quente. e hoje, gripe, tiros, um poço sem água, o esquecimento de alguém. importa pouco. calou-se o homem que gritou três dias no fundo do poço, talvez já não lhe doam os ossos partidos.

click

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

ovelhas

são brancas e vão pela beira da estrada. umas atrás das outras. devagar. ou mais depressa. pouco lhes interessa. caminham apáticas para lugar algum. lugar nenhum. movem-se. ou param.

Princípio de Peter


"In a hierarchy, every employee tends to rise to his level of incompetence"

Laurence Johnston Peter

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Eu vi


"Se o meu peito diz coragem,
Volto a partir em paz."

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Eles existem II


dos olhos

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

António Aleixo

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Há palavras lindas

 
andarilho

domingo, 22 de novembro de 2009


"talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não exista qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique"

José Luís Peixoto, Nenhum Olhar

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

הקיר









 

 

dizem que a grande muralha da china se vê da lua. conta-se que algures em África havia uma frigideira de Homens no meio do mar. caem uns, levantam-se outros. a pequenez causa medo. e é uma pena que cada vez nasçam menos gigantes.

domingo, 8 de novembro de 2009

"Sonhar seduz a paz"

Ornatos Violeta, Nascer Devagar

sábado, 31 de outubro de 2009

scala (la)

é manhã e ainda ninguém sabe se o vôo levará os corpos a algum lado. está frio e ninguém sabe muito bem o que está ao lado. quase ninguém. estrada de ferro e a estação velha à chegada. a falta.

quase tudo é o que parece. as coisas a quererem sempre o mesmo. certo, certo, certo. depois há o resto todo. o resto que nem sequer importa, o que mal se vê para lá das luzes. o caminho que se abre pela rua fora, há uma rua enorme numa cidade grande e quase todos estão perdidos. quase todos. quase.

é manhã. é manhã e noite ao mesmo tempo. chineses que berram, velhos de pele caída a vaguear pelos cantos, olhares atirados contra as paredes e uma frase ecoa na mente "a morte toda...", "eu tenho a morte toda para dormir...". faltas e há uma luz que se acende.

estamos em todo lado. não há praça nenhuma do mundo onde não estejamos. nas pombas, nas pedras, na velha de lenço preto ou até mesmo numa montra qualquer. estamos em todo o lado. eis o império.

depois, os rios correm sempre para o mar de uma maneira ou de outra. as barragens rebentam, as pontes caem. as portas fecham-se e faz frio na rua-casa-cama. "não há longe". apesar de ser infinito. o ar pode faltar em dois lados ao mesmo tempo e há coisas que só se descobrem quando se sentem.

há coisas que só se descobrem quando se sentem.

a vida é curta demais para nós que havemos de passar tanto tempo mortos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

amigo, não tenho perguntas para fazer-te. quantas
pessoas entendem aquilo que não entendo? quem
descobriu o segredo mais inútil?

amigo, não tenho perguntas para fazer-te. basta-me
olhar. passaram anos, poderiam ter passado mais
anos ainda. poderiam passar séculos.

entendo o teu rosto. isso basta-me quando te vejo.
para mim, serás sempre o príncipe, a criança que
me mostrou as árvores.

o tempo não passou, amigo. agora, ao chegares,
olho para ti. o teu rosto é igual. agora, ao chegares,
sei que nunca partiste.

José Luís Peixoto, Príncipe

terça-feira, 27 de outubro de 2009


azar



eu conheço um homem que tinha dois filhos, dois irmãos e uma irmã. o homem tinha dois sobrinhos e a irmã puta de profissão. o homem estava a fazer uma casa e tinha dois filhos e uma mulher. o homem achou por bem não deixar os sobrinhos serem entregues a uma qualquer instituição. o homem tem agora dois filhos e dois sobrinhos para alimentar e ensinar a ler. o homem acha que devia ser ajudado de qualquer maneira pelo estado. o estado acha que não.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

côco

O mofo tem o mesmo cheiro de sempre por mais luz e ar que circule por entre o chão e o tecto. Mais longe, a vista de sempre é igual. As árvores que crescem devagar como se o não fizessem, o correr do rio, o embalar das folhas pela brisa da tarde, um comboio ocasional... Hoje, cheiro a tinta verde com que mãos vagarosas pintam a casa pequena.

Creio que poderiam passar mil anos e tudo seria igual. Mas virá uma ponte nova e o som do comboio ocasional será um constante rugir de motores furiosos, haverá ainda quem comprove que os carros são seres racionais que, de certo modo, absorvem a raiva de quem os conduz, como na natureza nada se ganha nem se perde estando tudo sujeito a uma infinita transformação, pode concluir-se que a raiva se transforma em som.
 
Rio por vezes...

-Tens ai um saco de plástico?
-Não sei, [procura e encontra um de papel meio roto] toma, serve?
-Serve pois...

Não servia. Ando e deixo-o no primeiro caixote do lixo que encontro, vou a pé pelo caminho que é ainda cicatriz, o latejar a cada passo... Mas precisava de um saco. Surge a epifania e o padeiro ajuda. As padarias costumam ter gente dentro às cinco da manhã.
 
-Bom dia, pode arranjar-me um saco de plástico?
-[…]
-[…]
-Serve?
-Sim! Obrigado! 
 
Procuro um espelho. Largo o saco. Volto para casa.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

algures sob o luar da patagónia um elefante anão uiva aos corvos albinos

terça-feira, 20 de outubro de 2009

sapiens sapiens?

descobri hoje a razão de não sermos os únicos a ter o polegar oponível. assim, é possível comparar certos exemplares da espécie humana ao, por exemplo, gambá.

descobri também o porquê da existência de noventa por cento das guerras do mundo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Mariposa


quarta-feira, 14 de outubro de 2009


depende






















terça-feira, 13 de outubro de 2009

e talvez agarre a madrugada

vi hoje um orangotango a lavar roupa. imitava o homem que tinha ao lado. lavou depois os braços e a cara. o orangotango não usa roupa. não precisa de roupa lavada, mas lavava roupa e sorria como é possível ao orangotango sorrir.

sábado, 10 de outubro de 2009

das pandeiretas

sombra-luz e os olhos semi-abertos-semi-cerrados-semi-qualquer-coisa. coisa, qualquer coisa e eis a ausência de palavras estendida a quase tudo. não é mau de todo, o silêncio, o problema é que poucos o sabem escutar. barulho, tanto barulho. tanta palavra solta por aí sem que nada se diga. tanta, tanta...

e isto cansa. isto. isto do ser uma outra qualquer coisa faz cócegas nos pés e incomoda as horas. as horas que agora são uma papa grossa e amarelada atirada contra a parede. deixei de ver homenzinhos desfeitos em verde a meio da noite e estou em crer que isso não foi necessariamente bom. a normalidade é uma merda.

gosto de andar à chuva, a pele é semi-impermeável e não se consta que por mais enrugada que fique, alguma vez deixe a água chegar aos ossos como dizem alguns daqueles que acreditam que a terra é redonda. não é! há montes e vales e mares e rios e casas e florestas e desertos e pedras no meio dos desertos e formigueiros entre as pedras. redondas são as bolas, se bem que só algumas.

faz-me falta os carris. faz-me falta os pratos pequenos a voar. faz-me falta a guitarra na parede. faz-me falta as garrafas pequenas. faz-me falta o cheiro. faz-me falta o chão. a distância é uma coisa absurda.

Fazes-me falta!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

isto

isto é silêncio e a depressão que já não anima. isto é a vontade e a falta da mochila azul. isto é o longe mesmo que os metros sejam centimetros. isto é o convite que fica preso sem qualquer razão aparente. isto é a falta de gente. isto é outra coisa qualquer.

e não. isto não sou eu.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

outono

vi hoje as primeiras folhas castanhas a esvoaçar a caminho do chão. e o homem de vassoura a tentar apanhá-las. varrer, esvoaçar, varrer, esvoaçar e há-de ser assim até que as árvores voltem a ser mais que paus espetados a apontar o céu. as árvores são sempre mais que isso, aliás.

e chove na rua, do lado de fora da janela, chove.

gosto do outono. gosto-o na mesma medida em que o detesto. gosto da lama e do mar revolto e da água a entrar pelas casas e dos barcos presos em ramos e telhados e do quente que o cheiro das castanhas trazia no tempo em que havia castanhas no outono. detesto-lhe a melancolia e a ironia dos azulejos pintados a cobras de rabo na boca.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

há por aí muita gente boa



O Sr. Silva não sabe falar nem comer bolo-rei. O Sr. Silva  tem ar de quem bebe pouco vinho. O Sr. Silva não é simpático. O Sr. Silva é alto demais. O Sr. Silva não gosta de cravos. O Sr. Silva deve gostar de mantas de lã. O Sr. Silva ainda não conseguiu descobrir o segredo dos pasteis-de-belém. O Sr. Silva jamais andaria em cima de uma tartaruga. O Sr. Silva não é amigo do Pinto da Costa. O Sr. Silva faz caras feias. O Sr. Silva não há-de escrever livros para crianças. O Sr. Silva devia demitir-se.

noite

são largas, as horas...

terça-feira, 29 de setembro de 2009

marés

256
.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

do que é

Agora só temos que nos entreter mais um pouco. Descansarão as peixeiras e os entusiastas de bandeira no ar. O magalhães evolui para a versão dois, os putos evoluem também para uma outra versão qualquer e tudo o resto evoluirá durante outro par de anos, pelo menos. A evolução pode ser positiva e negativa, como tudo. A ironia, essa, há-de continuar a ser espalhada pelo mundo como aquelas cisternas de leite lá longe, não tão longe quanto pudessem ser úteis a alguém... Há fibra a crescer pelas casas, trepadeiras dos tempos modernos enquanto os livros se habituam ao pó. O mundo. O mundo que todos os dias entra pelas casas... O mundo que interessa, o que nos querem mostrar... Sempre eles a escolher. Sempre eles a mandar no que vemos e no que havemos de sentir depois de ver e por aí fora até que o abutre invada os sonhos. Mas acorda-se e está tudo igual. A ponte cor-sangue-de-boi cheia de carros às nove da manhã e o café sempre frio no sitio do costume. Sempre tudo igual... Aparecem uns, desaparecem outros, mudam as cores da calçada, vagueiam os gatos, inundam-se as ruas no inverno, arrefecem os pés mas a casa costuma aquecer os ossos suficientemente bem para nunca se pensar nisso. Só quando a não há por perto, ou também.

quase branco

Pulseiras e brincos, óculos e aneis. Gritos absurdos e pouco mais. Desbota o preto dia após dia, ano após ano, na correria rumo a uma qualquer coisa que ninguém sabe o que é. Há-de restar sempre o que ficou, guardado, lá, no lugar que se sabe e, lá, não há cloro que possa fazer efeito.

"Agora em espanhol..."

domingo, 27 de setembro de 2009

isto

farto do diz que disse
diz que viu
diz que aconteceu
diz que estava lá um amigo de um amigo
que é amigo teu
farto de ouvir
o mais bonito
o mais astuto
o mais sensível
mas o incrível
é que ao espelho eu só vejo o mais bruto
farto das mesmas queixas no mesmo caderno
farto da caneta que me leva ao inferno
farto de mim de ti de nós contra o resto do mundo
a selecção deles é mais forte
ficaremos sempre em segundo
ninguém te disse
ninguém te contou
ninguém te falou
não dá para ganhar
eles dizem foge foge
mas eu fico
foge foge
e eu fico
cada vez mais bandido


não sou luz da serra
nem sombra nem luz
nem sombra da noite
no alvor da madrugada
não sou coisa nem nada
talvez louco
o louco não tem número
o limite da soma é o vazio
não sou murmúrio de rio
nem cigarro viciado
nem ponta de cio
nem lua patética
crescendo e fugindo do tempo que passa
não sou quebra-luz
nem gavinha entrelaçada num abraço de frio
sete raios de sol queimaram o sonho
sete chuvas de esperma o fecundaram
já não sou resina
nem merda nem mijo
nem sangue nem seiva
morreram afrodites e leões de pêlo fulvo
quando se inventou a alma
e eu não sou mais do que rescaldo
já não sou poeta nem nada


Manel Cruz, "O canto dos homem-conto"

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ora digam lá mal do Sr. Silva




"Sua Santidade o Papa Bento XVI efectuará uma Visita a Portugal no próximo ano, em resposta ao convite que lhe foi endereçado pelo Presidente da República.

Para lá do programa oficial, Sua Santidade o Papa Bento XVI deslocar-se-á ao Santuário Mariano de Fátima, onde presidirá às cerimónias religiosas de 13 de Maio."

Quem é amigo do povo, quem é?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

do mês

Oito anos e ainda há quem se lembre dos corpos sem penas a cair de janelas perto do céu. A queda, ou o susto, o estalar dos ossos no chão ou o baque a meio da queda. O ouro misturado com o medo, uma confusão enorme pintada a cinza-pó. E nós a apreciar tudo segundo após segundo, segundo após segundo. É verdade que as cartas deixaram de cair na mesa, mas nem por isso as gargantas ficaram mais secas. Passaram oito anos.

Quatro anos e a pergunta é a mesma. Alguma coisa? Porquê? Nada? Dizem que a vida continua para quem cá fica, mas isto depende sempre daquilo a que se chama vida que as definições nunca agradam a todos. Factos são factos, o resto sobra para quem há-de sempre olhar para a esquina a seguir.

Três anos e o gajo da guitarra e da pose morreu entretanto. Lá continua o lago e o rio lilás mais os barcos abandonados. A voz estará resguardada algures, agora, longe das luzes.

Dois anos, o preto e um pequeno almoço diferente, quase igual. Seres que comem piolhos quando a noite se confunde com o dia e o dia com a noite. Ácido e pintas brancas nos pés.

Um ano. Águas mil. Podia ser Março para a canção fazer um pouco mais de sentido, afinal, no Brasil o Verão não acaba depois de Agosto. A lama faz maravilhas à pele e o sol ajuda-nos a assímilar vitamina D. A cor sangue-de-boi é linda de ver e isto é daquelas verdades absolutas, pelo menos para mim.

Hoje. Azulejos escondidos debaixo das saias e o mesmo ser-não-ser em tudo, desde sempre. Pedras escondidas debaixo de água e casas atrás de muros, livros encobertos por pesadas cortinas, lindas, e as árvores a tratar do resto. Chovem nuvens na rua ou talvez tenham só pousado um pouco. Um facto, as pessoas são más.

outono

qualquer coisa... e depois verbos soltos como na cantiga do Zé Mário. vaguear, deambular, acontecer, andarilhar, amanhecer, suceder, ver, ser, gostar, dizer, fazer, amar, chover, cantar, alindar, descer, contar. verbos soltos e as frases a ganhar forma. mas não hoje. cai o império sob os ouvidos. o império...
isto são tudo ironias, azulejos trazidos por mouros trepadores de muros e relógios de corda apodrecida pelo tempo. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

tempo-espaço ou outra coisa qualquer

Correr. Outra vez. Subir e descer as mil e uma pedras. As horas todas a bater em cima dos olhos. O passo encurta e a corrida de si já só tem o nome. Os metros são grandes demais, absurdamente grandes, como os dias se foram fazendo. Faltam palavras que sobram. O eco, esse, é sempre o mesmo nas paredes da alma. [leve, mão, sol, medo, dança, vento]. Simples. Demasiadamente simples para que alguma vez se possa tentar explicar.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

da manta em cima das pernas


sorte

há aquela história-anedota do acidente em que a sorte é tudo. é o morto que teve a sorte de não ficar paraplégico e o paraplégico que teve a sorte de não morrer. isto contado assim até que tem a sua graça. até ao dia em que deixa de ter. como tudo...

Cierto

?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Música

como um raio a rasgar a vida, como uma flor
a florir desmedida, como uma cidade secreta
a levantar-se do chão, como água, como pão,

como um instante único da vida, como uma flor
a florir desmedida, como uma pétala dessa flor
a levantar-se do chão, como água, como pão,

assim nasceste no meu olhar, assim te vi,
flor a florir desmedida, instante único
a levantar-se do chão, a rasgar a vida,

assim nasceste no meu olhar, assim te amei,
vida, água, pão, raio a rasgar uma cidade secreta
a levantar-se do chão, flor a florir desmedida.

José Luís Peixoto

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Sexta



Fica longe este ano o tejo e a quinta vermelha. Nem sempre se pode ter tudo... Haverá o bandido a poucos metros dos sentidos.

de uma noite longe

somos a fachada
de uma coisa morta
e a vida como que a bater à nossa
porta
quando formos velhos
se um dia formos velhos
quem irá querer saber quem tinha razão
de olhos na falésia
espera pelo vento
ele dá-te a direcção

ninguém é quem queria ser
eu queria ser ninguém

a idade é oca e não pode ser motivo
estás a ver o mundo feito um velho
arquivo
eu caminho e canto pela estrada fora
e o que era mentira pode ser verdade
agora
se o cifrão sustenta a química da vida
porque tens ainda medo de morrer
faltará dinheiro
faltará cultura
faltará procura dentro do teu ser

diz-me se ainda esperas encontrar o
sentido
mesmo sendo avesso a vê-lo em ti
vestido
não tens de olhar sem gosto
nem de gostar sem ver
ninguém é quem queria ser

Manel Cruz, Ninguém é quem queria ser